Crônica da Cidade

por Mariana Niederauer
postado em 09/05/2021 23:06 / atualizado em 09/05/2021 23:10

Partidas que doem na alma

Minha mãe é uma peça 3 foi o último filme a que assisti em uma sala de cinema. Era uma daquelas sessões voltadas para que mães possam levar os filhos, antes da pandemia, em reunião inimaginável hoje. A intensidade de Paulo Gustavo dominava a cena e contaminava o público, compenetrado do outro lado da tela.

Lembro-me de ter assistido também ao primeiro longa da franquia, numa viagem ao Rio de Janeiro. Foi divertido, e uma boa pedida para uma noite de férias, mas gargalhada mesmo eu dei com o vídeo que passava ao fim da película. Era Paulo Gustavo filmando a mãe — inspiração para Dona Hermínia — em uma gravação caseira. Dea Lucia corria atrás do filho, brigando com o sotaque e a descontração carioca, enquanto o ator seguia aprontando o quer que seja que a irritava.

Quando dizem que a arte imita a vida, nem sempre é uma cena assim que imaginamos. Mas o humorista que nos deixou na última semana mostrou ser possível dar cor e humor mesmo para os temas mais duros e desafiadores do nosso cotidiano. O preconceito, a construção de identidades, a maternidade, a velhice.

Impossível imaginar a dor da família que perdeu um pai, filho e amigo de tamanho talento, sensibilidade e energia. Se o país todo também reverberou esse luto, não foi apenas por essas características — que, dada a relevância do artista para o cinema nacional, não são pouca coisa —, mas também pelo que representa essa morte ao lado de outras 420 mil, pelo menos, no período de pouco mais de um ano.

Com todos os mais sofisticados recursos que a medicina hoje pode oferecer, Paulo Gustavo não resistiu às complicações da doença traiçoeira que nos mergulha no caos sanitário e econômico. No Rio de Janeiro que sangra o sangue das vítimas da epidemia de violência e sufoca impotente diante da força do vírus, engrandecido pelo apagão institucional.

Nesse mesmo Rio, mas em outro cenário, foi-se um ícone do soul brasileiro. Se você já se apaixonou, provavelmente deixou o coração embalar em algum ritmo composto por Cassiano. As lembranças, as estações, as sensações que saíram da mente dele marcaram época e embalaram histórias de amor em folhetins. Também infectado pela covid-19, precisou lutar por uma vaga em hospital público.

Tanto Paulo quanto Cassiano tinham na veia algo que é a cara do Brasil. Uma essência inexplicável. Irreverência, sentimento, gingado, potência. Um toque que tornou única e intensa a obra que deixaram. Hoje é a gente que traz as rosas para homenageá-los e aplaudí-los de pé.

 

 

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