Crônica da Cidade

Como música

Fui educado pelas canções. Aos livros, destinei o lugar mais sagrado do meu altar, e foi com eles que quis me meter (embora os meus sigam secretos). Seria injusto, entretanto, se dissesse que aprendi a viver com os versos de Fernando Pessoa ou com os romances de Saramago. Quando os li, o mundo já se decodificava para mim pela melodia e pelas letras.

Talvez por isso eu quase nunca tenha chorado no cinema, talvez por isso eu nunca tenha chorado ao observar, mesmo que comovido, um quadro de Turner, talvez por isso eu nunca tenha chorado ao ler, 575 vezes, as primeiras linhas de Tabacaria. A música sempre acessou um lugar de mim que se mantém oculto o tempo todo.

Pensando, é como se houvesse alguma barreira que se quebra apenas pela conjunção de certos sons, de certas palavras musicadas. Minhas glândulas lacrimais — pouco usadas, pelas prisões tolas que nos impomos — são ativadas muito mais facilmente pela música. Toda forma de arte me fascina, mas a música me coloca em outro estado.

Certa vez, um escritor de quem gosto muito escreveu que toda arte de valor é silenciosa. Eu não concordo, porque há a música. Ou concordo, porque a música talvez seja a forma mais bonita de silêncio, uma maneira de transformar o ar em coisa, de dignificar o nada, de resistir.

Desde muito cedo, quis aprender a tocar algum instrumento. Comecei pelo violão, cheguei à guitarra e a umas brincadeiras em alguns outros. Nos dias mais tristes, conforto-me com os dedos cheios de calos, ao som de acordes menores, e componho canções melancólicas que pouquíssimas pessoas serão obrigadas a ouvir. Sempre soube que não seria músico de verdade, não estava à altura, e sempre fui devoto demais para ousar tal heresia. Preferi a literatura, talvez por falta de juízo.

A verdade é que o texto, quando é bom, é quase música. Os craques, já dizia o clichê, jogam por música. Não acredito nem confio em quem não gosta de música. Para João Cabral de Melo Neto, eu abro uma exceção, com a certeza de que não era bem assim. Música não é só beleza. É ruído, é pedra, é faca.

Às vezes, pego-me ouvindo sem parar a mesma canção. São reproduções e mais reproduções. Enquanto escrevo esta crônica, a trilha é A la ventana Carolina, do mexicano David Aguilar. Como sempre, a música me ensina algo. Em tempos de isolamento, ouço Aguilar como quem reza: “Talvez você precisasse dar uma olhada na janela, Carolina / Para se dar conta de que seu coração não tem limite de espaço / Como o céu que se estende sem paredes atrás das colinas”.