Força ancestral

Indígenas relatam a dificuldade de morar em ambientes urbanos e a discriminação vivida pela comunidade

Edis Henrique Peres
postado em 21/04/2021 18:10
 (crédito: Arquivo Pessoal)
(crédito: Arquivo Pessoal)

Abril é o mês da visibilidade indígena. Um período de reflexão para descartar, inclusive, algumas terminologias. Dia do Índio? Nem pensar. O termo exclui a história dos povos originários, que resistem diariamente contra o preconceito. Na capital do país, dois polos educacionais acolhem indígenas: a Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Federal de Brasília (IFB). Hellen Torres, por exemplo, é estudante de pedagogia do IFB e afirma que os povos indígenas existem e resistem na cidade.

A estudante de 20 anos e moradora de Vicente Pires narra o processo de resgate para encontrar suas raízes e também sua identidade. “É importante essa busca, pois nós, enquanto moradores do Brasil, precisamos saber de onde vem as nossas origens e reconquistar nossas memórias”. Em busca de descobrir qual a sua etnia, Hellen contou com a ajuda de amigos indígenas e também de documentos para traçar uma árvore genealógica até o povo Kariri.

“Minha bisavô veio do Ceará e teve muito de sua história arrancada. Assim como minha avó. Para descobrir esse passado, eu peguei a história da família e nosso sobrenome, pesquisei em sites do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e fui fazendo esse resgate aos poucos. Temos um grupo que usamos para buscar as nossas raízes. E fazemos isso, analisamos documentos, reportagens antigas e vários outros elementos para resgatar essas informações. Inclusive, contamos com a ajuda de pajés no processo de como se reconhecer como indígena na sociedade”, explica.

Para Hellen, foi fundamental o encontro com a própria identidade e o conhecimento das tradições indígenas. “É importante que as pessoas valorizem mais os povos tradicionais. Leiam autores indígenas, pesquisem, enalteçam, façam parte dessa luta”, destaca.

Desafios
O território urbano nem sempre é amigável com os indígenas. Dinamam Tuxá, 33, doutorando em direito da UnB, conta que devido a suspensão das aulas presenciais voltou para o seu povo, que vive na Bahia, no Vale do São Francisco. “A diferença cultural é muito grande e nem sempre as pessoas da cidade aceitam os nossos costumes. Eles tentam nos desqualificar. Durante a minha graduação, em 2005, eu e meus colegas indígenas éramos muito julgados. Principalmente por fazer um curso elitista. Os outros estudantes não aceitavam que aquele espaço poderia também ser ocupado por um indígena”.

Apesar dos desafios, Dinamam revela que, quando fez o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), muitos colegas que o discriminaram não foram aprovados. “Hoje, no doutorado, é um pouco diferente, porque as pessoas já são mais maduras. No entanto, o sistema ainda é arcaico e conservador”. Devido aos desafios vivenciados, Dinamam escolheu como tese de doutorado estudar o “Acesso à justiça para os povos indígenas”.

“O caminho que temos pela frente ainda é longo. Desde a terminologia índio, que agrega uma série de racismos. Temos no Brasil mais de 305 povos que falam mais de 274 línguas e cada um desses povos tem sua especificidade. É uma nação. Não podemos ser reduzidos a tão pouco”.

Autoafirmação
Um dos desafios enfrentados pelos povos indígenas nas cidades é o questionamento constante sobre a sua identidade. Suliete Baré, 34, mestranda em direitos humanos e moradora da Colina, do câmpus Darcy Ribeiro da UnB, relata o cansaço de autoafirmação.

“Os indígenas que estão na cidade hoje precisam ficar o tempo todo se reafirmando como povo indígena. Estamos cansados de ouvir que não somos mais indígenas, porque estamos na cidade, ou porque temos um celular ou porque estamos calçados com determinado tênis. Ao contrário do que eles pensam, quando estamos na cidade, nos tornamos mais indígenas ainda, porque acabamos dizendo, diariamente, que somos povos tradicionais. Nossas raízes são fortalecidas devido ao questionamento da sociedade”.

Para Suliete, o mês de abril é um convite à reflexão. “Esse período do ano que temos um destaque sobre os indígenas é também o mês de que representa a resistência, pois vários povos que já foram dizimados, mas continuamos lutando. Estamos resistindo há 521 anos, e não vamos desistir. Seguimos em frente em busca de reconhecimento e liberdade”.

Corpo território
Braulina Baniwa, 37, mora atualmente na Candangolândia, mas seu povo é do Amazonas. Estudante de antropologia social, Braulina conclui o mestrado em maio. A índigena é ex-presidente da Associação dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília (AAlUnB) e destaca a importância de dar voz aos povos indígenas. “Por muito tempo os não indígenas falam sobre nós em termos genéricos e violentos. Algumas ações são feitas para apagar a nossa cultura, a nossa história”, pontua.

Com o mestrado, Braulina pretende levar mais ajuda para o seu povo. “É uma luta constante que vivemos, por território e pela vida. Buscamos repassar nosso conhecimento geracional. E com o mestrado quero construir ajudas políticas que permitam a nossa permanência nas universidades, por exemplo. O ingresso está bem mais fácil, devido aos vestibulares, mas a permanência do indígena dentro do ensino superior ainda é muito complicada”, explica.


Para saber mais

» Segundo dados do Sistema de Gestão Acadêmica (SGA) do IFB, hoje existem 67 estudantes matriculados e autodeclarados indígenas. O SGA foi implantado em 2015 e o IFB já formou 39 estudantes de origem indígena.
» Apenas no 2º semestre de 2020, 24 estudantes indígenas ingressaram por processo seletivo na universidade. Do começo de 2018 até hoje, 240 povos originários iniciaram seus estudos na UnB. Os dados são do Sistema Integrado de Gestão das Atividades Acadêmicas (Sigaa).


Rede social

» Conheça a página Retomada Kariri no Instagram:

@retomara.kariri.ce


Diversidade

» Indígena e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Daniel Munduruku defende que o Dia do Índio, como é comemorado, apenas ajuda a fortalecer os preconceitos sofridos pelos povos tradicionais. Munduruku explica que a palavra índio não é adequada, pois diz pouco sobre esses povos. O melhor termo, segundo ele, é indígena, pois significa originário, “aquele que está ali antes dos outros”. Por isso, o pesquisador defende que a data comemorativa deveria ser chamada de Dia da Diversidade Indígena.

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