Crônica da Cidade

A alegria da vacina

Estava assistindo a um telejornal na sexta-feira, quando o âncora anunciou: “Acaba de chegar uma leva de vacinas no aeroporto de Brasília e o governo vai vacinar as pessoas de 67 e 68 anos”. A minha mulher, Juçara, tem 67. Ficamos meio atordoados. Esperávamos que esse momento só ocorresse lá para setembro ou outubro.

Confesso que me encontrava muito angustiado com as notícias de um Brasil em transe: a irresponsabilidade dos governantes que conspiram contra a ciência, os crimes negacionistas contra a saúde sem castigo, os empresários ricos que furam as filas da vacinação, as filas de espera nas UTIs ultrapassando a marca de 400 pessoas, os ataques covardes aos governadores e aos cientistas que tentam salvar vidas, a escassez de remédios e de oxigênio.

Os cientistas avisando que sem lockdown o vírus ganhará a batalha. Os governadores abrindo o comércio no ápice do colapso do sistema de saúde. E o que é mais doloroso: a servidão voluntária de parte da população aclamando a quem as empurra para o precipício. Juçara disse com o realismo bruto de capricorniana: se alguém se contaminar, pode se despedir da família porque, dificilmente, volta. Não é espírito de catástrofe; é a consciência lúcida sobre os fatos. O risco Brasil nunca esteve tão alto.

Saímos voados para o posto de saúde mais próximo, situado na QI 21. Quando entramos na fila, ela estava na QI 19. A certa altura, sem nenhuma premeditação, em um átimo, nós começamos a chorar muito, com aquelas lágrimas de esguicho de que fala Nelson Rodrigues. Era um sentimento confuso por tudo que vivemos desde o ano passado, uma mistura de agradecimento e de dor porque 300 mil brasileiros não tiveram a nossa oportunidade.

E era tão simples, bastava o governo ter comprado as vacinas em setembro do ano passado. Elas chegariam em dezembro, evitariam as mortes e os lockdowns. Mas as excelências levaram a questão na brincadeira. O ministro da Saúde disse que, se houvesse demanda, o governo compraria.

Permanecemos por duas horas na fila, mas elas passaram rapidamente. Vamos reclamar de quê? A vacina é uma dádiva, um presente dos deuses. Como preferir a doença em vez da cura, a peste em vez do bálsamo, a morte em vez da vida?

Lá, encontramos a presteza e a competência dos profissionais que estão na linha de frente da batalha de salvar vidas. Esse é o Brasil que nos orgulha. Saímos do posto de vacinação com nova alma e com esperança renovada na vida. Estar vacinado não garante proteção absoluta contra uma doença coletiva, que necessita da colaboração de todos, mas imprime um novo ânimo.

Ainda precisamos da vacina jurídica e da vacina política. Se a frente ampla de defesa da vida que está se formando conseguir vacinas com os Estados Unidos, sobreviveremos. Viva o SUS, negligenciado na votação do orçamento de 2021, em detrimento dos investimentos bilionários para a compra de submarino nuclear e de caças e para aumento dos salários dos militares, em plena pandemia.

Na volta para casa, liguei o rádio e, de repente, a voz solar de Clara Nunes tomou o espaço do carro. Ela cantava Juízo final, de Nelson Cavaquinho. É um samba em feitio de oração, perfeito para o momento dramático que vivemos: “O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente/Quero ter olhos pra ver/a maldade desaparecer”.