SOLIDARIEDADE

Alunos da rede pública criam videocartas para oferecer afeto a quem precisa

Artistas cênicos, visuais e educadores do Distrito Federal orientam jovens estudantes de três cidades a criarem videocartas de amor e oferecê-las no YouTube num momento tão difícil para todos

Pelo menos 50 jovens da rede pública de educação têm redefinido tanto a representação de si quanto a capacidade de escrever, num aprendizado artístico, com pontuação afetuosa, propiciado pelo apoio de arte-educadores e artistas do Distrito Federal em áreas periféricas da cidade: chamado projeto Cartas de Amor nas ruas Virtuais, viabilizado para São Sebastião, Ceilândia e Recanto das Emas. Teatro, hip-hop, política e cinema incrementam o projeto, um desdobramento da performance autoral criada há nove anos pela atriz e educadora Nadja Dulci, mineira, há sete anos radicada em Brasília.

Estimular o protagonismo de jovens, em questionamentos brotados nas cidades e relações sociais, instiga a criadora de Cartas de Amor nas ruas Virtuais. Antes da pandemia, o projeto transcorreria dentro das escolas, com uma apresentação final na Rodoviária do Plano Piloto. “No final, identificamos a necessidade de transformar o material dos alunos em videocartas. Numa forma de cinema artesanal, com cuidado, qualidade e beleza”, comenta Nadja Dulci.

Profissionais com vozes entre comunidades trarão aos alunos conhecimentos sobre temas como teatro, hip-hop, circo-teatro, vivência de slammer e cinema. Mas estes encontros especiais, como o desta quinta-feira (25/3), serão abertos à comunidade. O cineasta Gabriel Martins, com passagens por festivais de Cannes, Roterdã e Locarno, apresentará a palestra Caminhos do audiovisual que dará suporte para que os alunos criem videocartas a serem exibidas no YouTube. Vencedor, há dois anos, do troféu Candango de melhor filme no Festival de Brasília, com Temporada, André Novaes Oliveira será consultor de um filme criado a partir do projeto e dirigido por Nadja Dulci.

Estilo amoroso

“Existe amor em Brasília, desde a criação: uma cidade que foi erguida por meio de um sonho não descarta amor”, salienta Nadja, ao falar do eixo central da proposta: atentar para a fluência de afetos na capital. As atividades paralelas serão abertas a todos interessados, não restritas aos alunos do ensino médio previamente selecionados. “O espaço virtual é importante para a democratização das dimensões do amor, um tema universal”, observa Nadja, que, com equipe “dedicada e propositiva”, incluídas a atriz MC Roberta Estrela D´Alva e a professora e drag queen Rita Von Hunty, estimulará os alunos na criação de videocartas, com fomento do Fundo de Apoio à Cultura. Em16 de abril, o trabalho final será exibido no site www.cartasdeamornasruas.com.br. Os alunos terão orientação, junto ao corpo de arte-educadores, de profissionais como o premiado diretor Gabriel Martins (do curta Rapsódia para o homem negro), a postos para tratar de planos de cinema, elaboração de roteiro e movimentos de câmera.

“Na criação coletiva, queremos provocar a produção de cartas situadas em contextos culturais diferenciados e apresentados pelas três cidades”, comenta a idealizadora. Apesar de alguma resistência propiciada pelo amedrontador termo filosofia, Nadja conta do contato dos alunos com o assunto e com a noção de que “amar é fazer política”. “Pretendemos que eles se entendam como atores sociais e como cidadãos que carregam atos políticos”, comenta ela, que terá respaldo do tema, a partir da participação da drag queen Rita Von Hunty.

Ainda relacionada à pandemia, a expectativa é de que as videocartas alcancem a percepção inclusiva de amor à Brasília e da vontade de mais intensa circulação. “A cidade tem muitos carros e um transporte público ineficiente. Brasília é uma cidade parque. Ocupamos pouco o parque, e a percepção de que a cidade é das pessoas é algo a ser explorado”, comenta Nadja.

Palavra de especialista

Expressão de sentimentos

“Meu papel com o grupo de alunos é o de oferecer um conteúdo de forma bastante clara, entendendo as várias potencialidades do cinema como ferramentas de contar histórias. Isso pode abrir caminhos criativos para os jovens e ajudá-los a ter mais dispositivos na forma de expressão. Eu acredito que é importante pensar quais sentimentos queremos projetar para o mundo, em um momento de tanta vulnerabilidade e incerteza, como o da pandemia. Em um momento de tristeza tão grande, penso: quais imagens importam? Acima de tudo, acho que a sinceridade de cada um dos alunos será a questão mais importante para o desenrolar do processo e o resultado final (com a criação do filme previsto pelo projeto).”

Gabriel Martins é diretor de cinema e sócio da Filmes de Plástico

Três perguntas / Rita Von Hunty, professora


Em que medida amar é um ato político?
Amar é um ato político, a partir do momento em que a gente constitui sociedade, porque a gente precisa pensar sempre o que é amor, em especial a partir do momento no qual a gente institucionaliza o sentimento. Aí existem amores não institucionais e institucionalizados, e vemos de que forma eles nutrem e cumprem interesses. De que forma práticas sociais são alimentadas por esse conceito de amor? Quais linguagens são consideradas amorosas e quais não? Quais tipos de amor são lucrativos e quais não? Todas essas questões são questões políticas do amor.


Como percebe problemáticas dispostas no ensino a distância? Houve superação?
Pensar em cima de distância, em um cenário desigual, é sempre uma questão. Então há o ponto zero: a gente precisa ter em mente de que a internet ainda não é um recurso acessível para o brasileiro médio. A maioria das pessoas no Brasil tem planos de internet que só contemplam seus celulares, e mesmo assim, seus WhatsApp. Então, como fica o pacote de dados de quem não tem uma boa internet? Como fica a possibilidade de assistir aula a distância de quem não tem uma boa internet? Como fica a possibilidade de quem só tem um dispositivo com acesso à internet na casa para estudar, trabalhar, se informar e se comunicar? Então, pensar ensino a distância no Brasil é como pensar saneamento básico, moradia e alimentação: é sempre uma ficção.


O que acredita acrescentar no cotidiano como palestrante para jovens?
Não sei se eu me acredito palestrante para jovens, né? Eu acho que eu estou dando uma aula e as minhas aulas são montadas sempre de forma interdisciplinar e com um ímpeto freiriano de respeitar os saberes de quem estuda comigo. As minhas aulas sempre disparam provocações e se constroem a partir do que trazem as pessoas que compõem o grupo. A aula não existe de forma prévia. Ela não é um conteúdo a ser aplicado. Ela é muito mais um conjunto de saberes dos quais eu disponho e de ferramentas que serão usadas conforme o ambiente educacional se mostrar interessante ou não para aquele saber. O que eu levo é sempre um conjunto de provocações e reflexões.