Um longo caminho foi percorrido no trabalho de um ano de combate à pandemia de covid-19 no Distrito Federal. Ao Correio, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem relatam uma rotina exaustiva, descrevem falta de recursos básicos para trabalhar e traçam um novo perfil de doentes no DF: cada vez mais jovens e com morte mais rápida.
Com 321 mil infectados, a capital conta com cerca de 31 mil servidores considerados profissionais de linha de frente, segundo a Secretaria de Saúde. De acordo com os últimos dados da pasta, 8.867 profissionais da área foram contaminados pelo novo coronavírus.
A enfermeira Vera Trajano, 42 anos, mora em Planaltina de Goiás e acorda às 4h30 para trabalhar. Atuando na UPA da cidade e em unidades de saúde do DF, Vera percebe que os jovens são os mais doentes nesta segunda onda da pandemia. “Os atendimentos aumentaram muito. Hoje em dia, não estamos atendendo só idoso. Não é só ele que está morrendo, crianças e jovens, também”, lamenta.
Vera conta que está exausta. Os dias e noites nas unidades de saúde estão impactando não só o físico, mas também o emocional da enfermeira. “Eu chego ao hospital às 7h e saio às 19h, muito desanimada. Todos nós estamos desse jeito, extremamente cansados. O serviço aumentou, a responsabilidade também e parece que não está rendendo. O nosso psicológico está muito abalado”, diz.
A enfermeira afirma que nunca passou por um período tão intenso na linha de frente. “Não conseguimos nem parar para comer ou ir ao banheiro. Se saímos por 15 minutos, na volta, já tem cinco ou seis pacientes a mais esperando”, relata.
O médico infectologista Werciley Vieira Junior, 37, comenta sobre os desafios da covid-19 e chama a atenção para o alto risco de contaminação entre o público mais jovem. “Os jovens circulam mais e nem sempre fazem corretamente o uso de máscara. Essa nova variante, aparentemente, está atingindo gente mais nova”, explica.
Com atuação da Rede Santa e no Hospital de Campanha da PM, o médico também passou por um período difícil depois de contrair o vírus. Em maio do ano passado, Werciley ficou 21 dias internado, sendo 15 na intubação. “Eu quase morri”, diz.
Falta de luvas
Os profissionais também lidam com a falta de equipamentos básicos para o dia a dia de um hospital. Uma técnica de enfermagem do Hospital de Base que não quis se identificar, afirmou à reportagem que a unidade está com estoque de luvas praticamente zerado. De acordo com a técnica, os funcionários têm que improvisar para trabalhar. “Faltam luvas para procedimentos básicos: fazer medicações, dar banhos, trocar fraldas, examinar pacientes”, conta. O Instituto de Gestão Estratégica de Saúde (Iges)-DF), que administra o hospital informou, por meio de nota, que tem um estoque de 10,9 mil luvas de procedimento não estéril de látex e acrescentou que nova remessa será recebida hoje.
Em outro desabafo, a infectologista do Hospital Águas Claras Ana Helena Germoglio, 40, afirma: “Tem dias que eu tenho vontade de largar tudo e, principalmente, celular”. A especialista atua na linha de frente no combate à pandemia desde a chegada da primeira paciente grave em Brasília. Além de amparar doentes, ela luta em outras frentes, como a da conscientização. “Eu fico muito triste, porque parece que estamos repetindo esse mantra de usar máscara, higiene e distanciamento. Já tem um ano, e grande parte da população faz questão de esquecer. Estamos enfrentando o negacionismo”, lamenta.
Para o epidemiologista da Universidade de Brasília (UnB) Walter Ramalho, medidas mais rígidas precisam ser aplicadas para conter os avanços da covid-19 no DF. Segundo o boletim mais recente divulgado, ontem, pela Secretaria de Saúde, a taxa de transmissão do vírus está em 1,12. “Estamos em uma situação muito complicada, porque, em primeiro lugar, há uma escassez de leitos, e a taxa de transmissão segue em crescimento”.
Para o especialista, o ideal é que a capital possa estar com R(t) abaixo de 1. “Enquanto estiver acima de 1, estamos com número de casos em aumento e sem ter estrutura de tratamento. E, ainda, existe uma grande quantidade de sequelas em pacientes graves acometidos pelo coronavírus”, alerta o professor.
Longe da família
Junto às preocupações diárias, o vírus trouxe outra dor à infectologista Ana Helena, a saudade. “Meus filhos moravam comigo, mas, desde o início da pandemia, eles passam a semana com o pai, e agora eu só os vejo no fim de semana, quando não preciso ir ao hospital”, conta.
A médica diz que passou três meses sem encontrar os filhos, pois tinha medo de contaminar as crianças. Para driblar a solidão, um dos momentos mais preciosos para ela é a interação com outras pessoas no ambiente hospitalar. “Convivemos mais com eles, do que com a nossa própria família, então, os momentos de descontração no próprio trabalho é o que nos salva”, comenta.
A fisioterapeuta do Hospital Brasília Jessica Machado, 32, alivia o estresse e exaustão práticas de exercício nas folgas. “Eu desenvolvi insônia, ansiedade, medo e quilos a mais. Mas neste um ano, consegui administrar com cuidado e, hoje, me sinto melhor e mais segura para continuar essa batalha”.
Assim como a infectologista Ana Helena, Jessica se distanciou fisicamente dos familiares por precaução. “Precisei sair de casa e me afastar dos meus pais e das minhas filhas. Posso dizer que, de todos, esse foi o maior desafio para mim”, diz.
Se dividindo entre o Hospital Maria Auxiliadora, no Gama, e uma unidade de saúde exclusiva para covid-19 no Novo Gama, a técnica de enfermagem Ana Rebecka da Silva, 21, cuida de pacientes em estado grave e intubados. Vivendo uma rotina intensa há um ano, a pandemia também fez com que ela tivesse que se mudar de endereço. Ela e o irmão são profissionais de saúde e moravam com a avó, de 70 anos. “Saímos de casa e fomos morar longe dela. Foi melhor assim”, diz.
No dia a dia do hospital, ela fez amizades e conta do amor pela profissão e pelas pessoas que passam pelas unidades de saúde. “Nos apegamos aos pacientes. Somos seres humanos”, diz.