IGUALDADE

Cegos relatam exclusão maior na pandemia e lutam por acessibilidade on-line

Com a disseminação da covid-19, pessoas cegas perderam espaços de cultura e educação. Agora, a luta passa a ser por mais acessibilidade na produção on-line

A dificuldade de não enxergar, apenas quem vive sabe. Associado a isso, ser uma pessoa cega em um mundo assolado por uma pandemia sem precedentes e precisar enfrentar cada desafio de um cotidiano repleto de novos percalços acarretados pela disseminação da covid-19. Um cenário que nem os mais catastróficos filmes hollywoodianos conseguiu mostrar.

Mas aqui é vida real e essa é exatamente a realidade para mais de 528 mil cidadãos cegos, além de outros seis milhões com baixa visão que vivem no Brasil, segundo Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano passado. Trata-se de uma população que se depara com severas dificuldades com questões como encontrar espaço no mercado de trabalho, buscar novos conhecimentos, consumir cultura e superar os limites encontrados no cotidiano.

A necessidade do isolamento social imposto pela pandemia obrigou essas pessoas a darem um novo significado à palavra adaptação. A internet até tem sido uma ferramenta importante nesse processo. Porém nem todo o conteúdo on-line está disponível para usuários com problemas de visão.

As redes sociais, por exemplo, onde tudo funciona basicamente com postagens, rolagens e cliques para curtidas, não são tão simples para quem tem algum comprometimento nas vistas. É o caso do músico e estudante Sávio Trindade Lobato, 24 anos, diagnosticados com doença chamada amaurose, responsável por uma cegueira total. De acordo com ele, foi preciso fazer adaptações na rotina, principalmente no que se refere à educação. “Por ser cego e depender do braille para leitura e escrita, necessito desse recurso em algumas disciplinas específicas de música”, explica.

Estudante da Escola de Música de Brasília (EMB), Sávio diz que a adaptação às plataformas digitais têm sido difícil. "Os ambientes virtuais de aprendizagem nem sempre oferecem acessibilidade para o manuseio. Assim, algumas tarefas ficam complicadas de serem realizadas com total autonomia”, lamenta. A produção de partituras em braille, normalmente, é demorada e agravou mais com a pandemia e suas consequências nas mais diversas indústrias. “Aliado a isso, ainda tem falta do encontro presencial com os professores”, relata o jovem.

Ainda conforme o aluno, o que antes era difícil passou a se complicar cada dia mais. “O despreparo dos educadores nessa nova realidade, a escassez de profissionais capacitados para a produção de material e a readequação curricular nas escolas nos prejudicam constantemente”, explica Sávio. Por outro lado, uma ou outra tecnologia têm auxiliado. “Alguns aplicativos, softwares e produto adaptável têm sido a salvação. Temos contando também muito com a compreensão por parte da escola e dos professores”, diz.

Cenário educacional

De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018, no Distrito Federal, 4,8% da população do DF tem alguma deficiência. Desse total, 2,7% são pessoas cegas.

A subsecretária de Educação Inclusiva e Integral da Secretaria de Educação do DF, Vera Lúcia Ribeiro de Barros, explica que, durante a pandemia, a pasta ofertou plataformas acessíveis, além de suportes para que os professores possam garantir o aprendizado dos estudantes. Atualmente, a rede de ensino do DF tem 525 estudantes com deficiência visual. “Há um centro de ensino especial extremamente importante no DF. A unidade desenvolve trabalho desde cedo com a criança por meio de um programa especializado e de atendimento precoce”, explica.

Segundo monitoramento da pasta, a plataforma superou as expectativas. "Foram mais de 95% de acesso”, contabiliza Lúcia. “Tivemos avanço, pois buscamos uma maneira nova de aprender e ensinar. A chave é a utilização da tecnologia para garantir o aprendizado, principalmente para esses estudantes”, garante.

O objetivo, segundo a subsecretária, é garantir o fortalecimento do ensino remoto. “Esse é o segredo para vencer o atual cenário pandêmico, de maneira que nos tornemos fortes e unidos com nossos estudantes para ter um retorno presencial seguro para as escolas”, conta. De acordo com ela, existem 109 unidades estudantis polos voltadas a esse grupo e 21 salas de recursos para garantir o aprendizado do aluno.

Mas os estudantes ainda pedem um pouco mais. É o caso de João Victor Alves Dornelas de Macedo, 15. “São conteúdos mais visuais, alguns professores sem conhecimentos de como trabalhar com uma pessoa com deficiência e falta de material”, lamenta.

Para o estudante, a situação pode ser resolvida com a oferta de condições de trabalho aos profissionais e qualificação contínua dos professores, para que saibam lidar com esse público. “No início foi difícil, mas depois me adaptei e me acostumei com essa nova realidade de aulas pelo Google Meet, com celular, notebook, máquina braille e tripé, entre outros”, relembra.

Ainda na escuridão: acesso à cultura é limitado

De acordo com a Constituição Federal, todos os cidadãos têm o direito de acesso à cultura assegurado. Afinal, parece justo que todos na sociedade tenham condições de lazer e participação em manifestações culturais. Entretanto, essa questão passa a enfrentar obstáculos quando o assunto é o direito de pessoas com deficiência.

Muitos lugares como casas de shows, teatros, cinemas e bares são receptíveis para quem tem algum tipo de limitação física. Mas não são todos. Ou seja, antigamente já havia a barreira física. Com a pandemia, as dificuldades desse público, quando se trata de cultura, aumentaram. É o que explica a diretora sociocultural da Associação Brasiliense de Deficientes Visuais, Zozimeire dos Santos Reis. “Durante a pandemia, ficamos sem acesso a tudo”, lamenta a assistente social.

Para Zozimeire, a acessibilidade surge quando há melhorias e incentivos à visitação, como audiodescrição, piso tátil e meios de transporte que ajudem cegos a se locomoverem. “Eu já estive em eventos tarde da noite e, como moradora de São Sebastião, a dificuldade fica ainda maior para voltar para casa. Ficamos privados de participar de certas coisas pela falta de estrutura”, resume.

Por meio da associação, a diretora diz que os participantes tinham acesso a muitas atividades. “Já chegamos a ter três eventos por dia. Estamos com algumas atividades on-line, mas não é a mesma coisa. A presença faz falta. Esperamos que isso termine logo para voltarmos ao nosso antigo normal”, projeta.

Tradutora de Inglês, Viviane Santos Almeida Queiroz, 24, sente saudade da cultura fomentada no DF. Ela conta que, antes da disseminação do novo coronavírus, frequentava muitos museus e cinemas. Com a pandemia, o que mudou foi a transferência de suas atividades da rua para o virtual. “O que sinto mais falta é a rotina de pegar a minha bengala e sair de forma autônoma para estudar, fazer as minhas atividades físicas e trabalhar nos meus eventos, como eu fazia antes”, conta.

Para promover essa acessibilidade, existem profissionais como os audiodescritores e os consultores de audiodescrição que, geralmente, são contratados para promover a inclusão nos eventos culturais em geral. “Na pandemia, a forma que eu encontrei para me divertir foi mesmo por meio de eventos culturais exibidos pela internet. No entanto, tive a oportunidade de ir ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) para assistir a uma peça de teatro. Lá eles seguiram todo o protocolo de segurança e foi muito proveitoso para mim”, conta.

Para Viviane, por meio da cultura deve-se investir em recursos de tecnologia assistiva e mecanismos que promovam o acesso. “Tecnologias como o recurso da audiodescrição, que pode ser inserido por meio de aplicativos em dispositivos, ou com o auxílio de profissionais da área, especialmente em museus e teatros. Ou, ainda, mais intérpretes de libras ou aplicativos que contenham legenda descritiva”, sugere.

No âmbito das políticas públicas, sobretudo o Fundo de Apoio à Cultura (FAC), a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF (Secec) ressalta, em nota, que apenas fomenta projetos com ações de acessibilidade, tanto estrutural quanto assistiva. “Assim, todos os projetos saem para a execução com essa obrigatoriedade para benefício de pessoas com deficiência audiovisual, surdos e, no caso de eventos presenciais, também aqueles com dificuldades de locomoção”, ressalta a pasta.

A secretaria conta que cabe ao proponente do projeto programar, ao menos, duas ações para esse público. “No último FAC Ocupação, por exemplo, foram estimulados projetos direcionados à Biblioteca Pública Dorina Nowill, cujas obras são voltados ao cidadão com comprometimento visual”, garante. A execução dessas intervenções artísticas obedece ao cronograma proposto e aprovado, portanto, não é uma ação coordenada pela Secec. Cada proponente tem o prazo de dois anos para realizá-lo”, pontua.

 

DADOS DA CEGUEIRA

Existem mais de seis milhões de pessoas com baixa visão

A cada 5 segundos uma pessoa fica cega no mundo

Estima-se que, até 2050, os casos de deficiência visual no mundo cresçam cerca de 178%

Aproximadamente 253 milhões de pessoas têm deficiência visual no mundo

80% dos casos de cegueira e baixa visão são evitáveis ou tratáveis se diagnosticados a tempo

Rede de Leitura Inclusiva

“Olhar para as pessoas com deficiência é olhar junto, é planejar, é olhar para essa realidade pandêmica e perguntar como elas seriam mais bem atendidas, ou como o professor pode preparar melhor a aula”, diz a representante da Fundação Dorina Nowill para Cegos, Angelita Garcia. De acordo com ela, o investimento não contempla somente pessoas com deficiências. “Quando eu preparo materiais acessíveis, todos aproveitam. Os idosos, aquelas que usam óculos e afins. É importante pensar que os desafios da pandemia podem ter se dado para qualquer um”, defende.

Angelita explica como ajudar esse público nas suas peculiaridades: “Eu já disse: é planejar junto. Não planejar para alguém”, acredita. Para auxiliar a comunidade cega, a representante diz que, a partir da mobilização da Fundação Dorina Nowill para Cegos, foi criada a Rede de Leitura Inclusiva.

O projeto fomenta o acesso à leitura e à informação para pessoas com deficiência. A representante da instituição Angelita Garcia diz que, além de fornecer livros acessíveis, a rede engaja os profissionais para servirem de ponte entre o cidadão cego e o livro.

A ação acontece em âmbito nacional, onde cada estado é mobilizado a formar grupos de trabalho para que construam novas ações de leitura e inclusão ou potencializem as já existentes. Os grupos de trabalho são compostos por profissionais, como bibliotecários, professores, educadores sociais, gestores, audiodescritores, tradutores e intérpretes de libras, entre outros, que compartilham experiências e oportunidades para atuação local.

Tendo a acessibilidade como foco, a participação nessa proposta é voluntária e as ações, gratuitas. Para saber mais do programa, acesse o site https://redeleiturainclusiva.org.br/.