O professor da Universidade de Brasília (UnB) e epidemiologista Jonas Brant foi entrevistado ontem no CB.Poder — uma parceria da TV Brasília com o Correio — e alertou sobre a situação atual da capital do país. Segundo Jonas Brant explicou ao jornalista Carlos Alexandre de Souza, é preciso estabelecer como prioridade, neste momento, salvar a vida das pessoas e adotar medidas restritivas mais duras. O médico ressaltou a importância da testagem para identificar os pontos mais críticos de disseminação da doença, além do rastreamento de contágio, para conseguir impedir a infecção de novos grupos de pessoas. O epidemiologista destacou que, caso a pandemia continue desenfreada no Brasil, há o risco de alguma mutação da covid-19 desenvolver o chamado escape imunológico e tornar o imunizante ineficaz.
O professor explicou que uma pessoa contaminada começa a transmitir o novo coronavírus dois dias antes de ter sintomas e, por isso, quando o caso é confirmado, ela já teve contatos com inúmeras outras pessoas. Por isso, segundo Jonas Brant, o apoio social e econômico do governo é primordial para estimular os cidadãos a adotarem o isolamento e conseguirem sobreviver. O médico frisou que a vacina é um instrumento importante para combater a pandemia, mas não deve ser a única ação do governo.
Qual a avaliação do senhor em relação à ampliação, em uma semana, do toque de recolher e das medidas restritivas do Distrito Federal?
A perspectiva não é boa. A gente optou por fazer um isolamento social parcial, não fechamos a cidade em um lockdown. O problema é que o isolamento parcial reduz a taxa de transmissão da covid-19, mas de forma lenta, o que significa que o número de novos casos por dia ainda é maior do que a nossa capacidade de liberação de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Hoje, temos cerca de 400 leitos de UTI na rede pública do DF, mas temos mais de 400 pessoas na fila de espera, ou seja, se a gente conseguir dobrar o número de leitos, no mesmo dia todos estarão lotados. Estamos vivendo um cenário trágico da história de Brasília.
A medida restritiva adotada ainda é insuficiente?
Sim. Em algumas cidades, como Araraquara, em São Paulo, tiveram uma resposta muito boa na primeira onda da covid-19, mas, na segunda, a situação foi bem pior. Para resolver, eles adotaram um lockdown extremamente rígido e, em 15 dias, conseguiram liberar 30% dos leitos e reduzir a transmissão. O problema da medida adotada no DF é que a redução do número de contágios é lenta, e o comércio já está com dificuldade de se manter fechado por muito tempo. Com a situação atual, é provável que daqui a uma semana o governador se veja, mais uma vez, na situação de prorrogar o isolamento social da cidade, porque muitas pessoas ainda estão circulando. Se colocarmos na balança que estamos com ocupação dos leitos de UTI por todo o país acima de 90%, iremos entender que o sistema, na verdade, já colapsou. Não são apenas mais leitos de UTI o necessário, mas o número de médicos intensivistas, o número de profissionais da limpeza, anestesistas, enfermeiros, a quantidade de medicamentos e materiais disponíveis, tudo isso é necessário. O lockdown precisa ser rígido, justamente para diminuir a sobrecarga na rede hospitalar e dar tempo de se organizar uma série de processos para manter os níveis de transmissão controlados.
Quais seriam esses processos?
Precisamos ampliar a testagem. Apesar das tentativas do laboratório de saúde pública, a testagem ainda é de cerca de 1.200 amostras por dia, e temos em média 1.500 casos diários no DF, isso porque a rede privada também está testando bastante. Desse jeito enxergamos somente a ponta do iceberg, sem ampliar a testagem, não conseguimos saber de onde vem a maioria dos casos e rastrear o contágio. Principalmente porque uma pessoa começa a transmitir a doença dois dias antes de ter sintomas, ou seja, quando a doença é detectada, ela já teve contato com inúmeras outras pessoas. Somente com o rastreamento desses casos é possível quebrar a cadeia de transmissão. E é fundamental medidas de apoio social e econômico para que as pessoas aceitem se isolar, pois os cidadãos precisam de dinheiro para sobreviver, se não trabalham hoje, como vão pagar a conta de amanhã? Por isso é fundamental a ajuda do governo. Outras medidas importantes são a inspeção ambiental e a vigilância sanitária.
Qual a prioridade neste momento?
Com certeza é salvar vidas. Precisamos da ampliação da rede hospitalar. Erramos, lá atrás, em não investir na contenção da pandemia, e agora precisamos evitar essas mortes. No entanto, só ampliar a rede não é suficiente, precisamos de lockdown rigoroso, mudanças de hábitos, comportamentos e culturas das pessoas. Não posso achar que porque te conheço, ou porque somos amigos, não preciso usar máscara, por exemplo. A ventilação dos ambientes também é importante, se não houver troca de ar, o local está ficando contaminado. A pandemia se comporta em ondas, e agora vemos o vírus ampliando sua contaminação, alcançado novos espaços. Tivemos o mesmo problema com a pandemia de influenza (gripe espanhola) de 1918 e 1919: a primeira onda foi forte, mas a segunda foi bem pior. É o cenário que vivemos hoje. Vejo muitas pessoas tentando voltar para o cenário que tínhamos antes, mas temos que caminhar para frente. O vírus continua circulando, e as mudanças de comportamentos são essenciais para garantirmos o mínimo de qualidade de vida.
E em relação às mutações da covid-19, principalmente da variante amazônica?
Temos uma vigilância genômica muito pequena no Brasil, ou seja, coletamos poucas amostras para avaliar a genética do vírus. E a mutação amazônica vem ganhando espaço em relação a outras variantes, mas o tempo todo as pessoas estão tendo mutações do vírus em seu organismo. O que acontece é que a maioria dessas mutações não sobrevive. Contudo, em um cenário descontrolado, é possível que algumas dessas mutações consigam sobreviver e ganhar vantagem no ambiente. E isso é perigoso, porque temos vacina, mas se não trabalharmos rápido para conter a transmissão, a probabilidade que essas mutações se acumulem e que apareça um vírus capaz de escapar da vacina é grande. É isso que acontece com a influenza todos os anos, precisamos sempre refazer a vacina para vacinar todo mundo, porque o vírus sofre mutações muito rápido. Mas não estamos conseguindo que as autoridades escutem o que a ciência tem a dizer, e ainda há essa tensão entre economia e saúde, que é totalmente infundada. É um falso dilema. Nós precisamos salvar vidas para salvar a economia; sem controlar o vírus, colocamos a sociedade em mais risco.
Há a discussão também relacionada ao pós-covid-19, não é isso?
Sim, não apenas como será a situação para os infectados, mas a sociedade precisa pensar em um pós-covid-19, porque todo o setor de saúde se desmobilizou. Uma série de ações da rede pública, como o pré-natal de mulheres, está fragilizada. É provável que a gente veja, no ano que vem, um aumento de casos de sífilis congênita que estava controlada pelo acompanhamento da gravidez. Programas de doenças não transmissíveis, como hipertensão e diabetes, também estão afetados. Lidar com esses impactos na saúde pública e economia será um desafio.
A vacina não é tudo, então?
Não, a vacina é apenas uma ferramenta para o combate à pandemia que funciona muito bem. Mas, sozinha, ela não é capaz de resolver tudo, por isso o rastreamento de contágio, os isolamentos, os usos de máscaras e todas essas ações são importantes. Isso precisa ser feito e rápido, principalmente porque a situação é terrível nas redes públicas. As pessoas, com o colapso da saúde, começam a ter prejuízo na qualidade de atendimento. É melhor fechar drasticamente a cidade por 15 dias e conseguir baixar a transmissão da doença, do que ter que ficar sempre retomando medidas restritivas.
Muitas pessoas usam medicamentos sem comprovação científica, o que fazer?
Em situação de pandemia, é comum que as pessoas busquem uma cura milagrosa e ainda tem aqueles que querem lucrar com o sofrimento alheio. O agravante foi que o governo federal também adotou essa postura como mensagem, e isso gerou confusão para as pessoas: se o presidente está recomendando deve ser verdade. Isso se multiplicou e causou muitos problemas. A maioria dessas drogas, se não forem usadas de maneira correta, além de não proteger contra a covid-19, pode causar diversos problemas de saúde na população.
Alguns países tentaram usar a tecnologia a favor do combate à covid-19, no DF há alguma ação desse tipo?
Sim, alguns países usaram o bluetooth como mecanismo de detecção de contato, mas no Brasil não temos aparelhos que consigam passar o dia com o bluetooth ligado. O que a UnB, em parceria com a ProEpi (Associação Brasileira de Profissionais de Epidemiologia de Campo), fez foi criar o aplicativo de celular para Android e iOS chamado Guardiões da Saúde. Hoje mais de 30 mil pessoas utilizam o aplicativo, e isso nos ajuda a entender o que está acontecendo. A iniciativa é importante, principalmente porque ela aponta de maneira muito rápida onde está tendo uma maior transmissão da doença. O sistema oficial leva em torno de sete dias para obter essa informação, mas com o Guardiões é bem mais rápido. Se o usuário do aplicativo acordou com febre e algum outro sintoma, ele pode reportar isso ao aplicativo. A UnB, agora, está trabalhando para ter apoio de entidades do DF, como alguns enfermeiros, para dar orientação prática ao pessoal que foi contaminado, como, por exemplo, o que fazer caso na casa só tenha um banheiro, quando pai e mãe forem contaminados e as crianças precisarem ser protegidas. Infelizmente, o governo do Distrito Federal não se mobilizou para usar o aplicativo.
O investimento na ciência continua escasso?
Sim, o governo (federal), além de não ouvir o que a ciência tem a dizer, reduziu os investimentos para as universidades no ano que vem. Ou seja, no lugar de estarmos investindo em ciências para não ficarmos dependentes de outros países como agora, reduzimos ainda mais esses recursos. Sem falar que perdemos a chance de articular corretamente a compra da vacina quando as doses estavam disponíveis. Nesse cenário, a situação das pessoas deitadas no chão à espera de leitos tende a piorar. A nossa taxa de reprodução de contágio está mais ou menos em 1, ainda. Ou seja, uma pessoa transmite a doença para outra, enquanto esse nível estiver alto, o número de casos novos e graves não vai abaixar, porque uma pessoa que entrar em um leito de UTI não sai em uma semana, por isso, a sobrecarga. Nos próximos dias o número de mortes pode se multiplicar ainda mais no país e em uma velocidade assustadora. E como a sociedade consegue se recuperar tendo tantos conhecidos vítimas da doença? Por isso, adotar uma medida rígida em um período curto pode ter um retorno melhor do que ficar com medidas restritivas mais fracas por um longo período.
E em relação à gestão do Ministério da Saúde e das mudanças de ministro?
O grande problema é justamente a falta de mudança. Estão em transição de ministros e, enquanto isso, ficamos sem definição das políticas de direcionamento para que possamos enfrentar a pandemia no país. Falta coordenação para responder a emergência que vivemos. O Ministério da Saúde sempre ocupou um espaço de direcionamento e, nessa crise, ele não fez isso. Um exemplo é cada estado ter adotado um plano de vacinação diferente. Nunca foi assim, o público prioritário era definido pelo Ministério e todos seguiam. Desse jeito, com cada estado e município remando para uma direção, nós perdemos energia e não alcançamos nosso objetivo.
Além disso, muitas pessoas vivem em situações bem mais vulneráveis que outras...
Sim, as pandemias costumam cobrar dívidas antigas da sociedade. O transporte público, por exemplo, é terrível há muitos anos, não começou com a pandemia. A moradia no DF é precária há tempos. Não são problemas de agora, mas a pandemia escancara essas fragilidades sociais. Por isso, é importante que a gente construa mecanismos e políticas públicas compensatórias de apoio social e econômico, porque somente isso pode garantir que essas pessoas mais vulneráveis consigam se proteger. Desde o começo, com o auxílio emergencial, houve o problema também de falta de certeza, ninguém sabia se no mês seguinte ia receber, isso fez com que ficassem com medo e tivessem de ir atrás de garantir o seu sustento.