MÚSICA

Alceu Valença aproveita a pandemia para dar nova roupagem a clássicos da carreira

Nas 11 faixas desse trabalho, Alceu recria canções que se tornaram clássicos

Irlam Rocha Lima
postado em 14/03/2021 06:00 / atualizado em 14/03/2021 12:28
 (crédito: Leo Aversa/Divulgação)
(crédito: Leo Aversa/Divulgação)

Alceu Valença passava temporada de um ano em Paris, no final da década de 1970, quando gravou o LP Saudade de Pernambuco, o único título de sua extensa discografia em que utilizou apenas voz e violão para o registro das músicas. Quatro décadas depois, o cantor e compositor volta a este formato no álbum Sem pensar no amanhã, parte de um projeto desenvolvido no período da quarentena, imposta pela pandemia, disponibilizado, na última sexta-feira, nas plataformas digitais. Outros dois estão prontos, mas ainda sem datas definidas para chegar ao público.

Nas 11 faixas desse trabalho, Alceu recria canções que se tornaram clássicos como Ciranda da Rosa Vermelha, Estação da Luz, La Belle de Jour e Táxi lunar e faz releitura de músicas menos conhecidas de sua obra, entre as quais Beija-flor apaixonado, Iris, Marim dos Caetés, Mensageira dos anjos. Algumas delas entraram no repertório por solicitação de fãs do artista pernambucano. Não por acaso, o lançamento ocorreu na data de aniversário de Recife e Olinda, duas das matrizes sonoras do compositor.

Conhecido como um artista estradeiro, Alceu, por conta do coronavírus, se mantém em casa, no Rio de Janeiro, desde março do ano passado, o que o impediu de cumprir uma agenda repleta de compromissos no Brasil e na Europa. O período de incertezas o levou a tocar violão como nunca fizera. Aproveitou para apurar a técnica e buscou novas maneiras para interpretar suas músicas, inclusive algumas escondidas de seu repertório, e até compor — tudo teve como estuário o Sem pensar no amanhã e os outros dois discos que virão, após o primeiro da série. Segundo ele, nem mesmo o barulho provocado por interminável reforma num apartamento vizinho chegou a ser empecilho.

De acordo com o cantor, o Sem pensar no amanhã segue uma espécie de roteiro cinematográfico. Ele diz que gosta de inventar, em seus discos e apresentações ao vivo, uma sequência que pode ser vista como uma viagem ou um filme. Poeticamente, com a visão de cineasta — ele idealizou e dirigiu —, explica: “A câmera vem da praia de Boa Viagem, em La Belle de Jour, sobrevoa as igrejas de Olinda, em Mensageira dos anjos. Viajamos no Táxi lunar, no trem da Estação da Luz e vamos até a Ilha de Itamaracá e à praia de Maria Farinha com Ciranda da Rosa Vermelha”. Para ele, a música leva a lugares onde a quarentena nos impede chegar.

O que a princípio seria um álbum simples, acabou por tornar-se uma série de lançamentos digitais. Durante a quarentena, Alceu Valença, com a conhecida inquietude, se ateve à sua obra e de lá selecionou algo em torno de 30 composições — canções, sambas, xotes, maracatus, cirandas e frevos de bloco —, para o set list dos três discos, produzidos por Rafael Ramos. As gravações foram feitas entre novembro e janeiro últimos, no estúdio da Deck Disc, selo responsável pelo lançamento.

Sem pensar no amanhã Álbum de Alceu Valença com 11 faixas. Lançamento da Deck Disc disponível nas plataformas digitais

» Entrevista // Alceu Valença

Você sempre teve o acompanhamento de banda para gravar disco. O que o levou a gravar um álbum de violão e voz?
Com o advento da pandemia, estou isolado em casa, aqui no Rio, com minha mulher Yanê, desde março. Nunca mais apertei a mão de ninguém. Então passei a ocupar o tempo tocando violão. Desde que me entendo como músico, cantor e compositor, nunca toquei tanto violão como durante esta quarentena. Mas só posso fazer isso à noite, pois a interminável reforma de um apartamento vizinho, não me permite me concentrar durante o dia. Foi aí que passei em revista minha obra, criando outra versão, outra sonoridade para as músicas que compus ao longo da carreira.

Aí surgiu a ideia do disco?
Inicialmente eu pensava em gravar um disco. Mas foram tantas músicas revisitadas que acabei decidindo por uma série de três. Ao primeiro, que está sendo lançado pela Deck Disc, dei o título de Sem pensar no amanhã, um samba inédito composto neste período de recolhimento. Os outros dois, já gravados, sairão depois.

Já havia gravado disco neste formato?
Gravei apenas um, em 1979, quando passei temporada de um ano em Paris, mais precisamente no Quartier Latin. Lá, como tenho feito agora, vivia com violão nas mãos. Tocava diariamente. Longe da minha terra, mas a mantendo na mente, gravei o LP Saudade de Pernambuco, só de voz e violão. O Paulinho Raphael, guitarrista da minha banda, apareceu por lá e participou do trabalho.

Qual foi o critério para a escolha das músicas?
Como faço sempre em meus discos e nos shows, criei um roteiro para este álbum, como se fosse para um filme, com uma música conectada com a outra. Cada um dos três discos gravados para este projeto, tem sua história. No Sem pensar no amanhã imaginei voltando ao Marco Zero de Recife e às ladeiras de Olinda durante o carnaval, cantando xote, frevo, maracatu e ciranda no bloco Pitombeira, que tem sede atrás da minha casa.

A música que dá título ao álbum é um samba. Você já havia feito composições com este ritmo?
Fiz poucas. A primeira que gravei, porém, não era de minha autoria, um samba-choro chamado Candango sofredor. Foi composto por Rinaldo Valença, um tio que vivia em Brasília. Mas gravei num disco dele.

Como artista andarilho, está com saudade da estrada?
Durante muitos anos, o lugar onde menos fiquei foi na minha casa, no Rio, pois estava sempre na estrada. Aliás, depois dos três discos do projeto, tenho um outro para lançar intitulado Senhora estrada, em que falo de minhas andanças pelo país e o mundo. Por causa da pandemia, deixei de fazer duas turnês em 2020: uma, de 45 apresentações pelo Brasil, do começo de março a junho; e outra, em seguida, de 16 apresentações pela Europa. Adiei as duas turnês para este ano, mas tive que adiar novamente, para 2022. É claro que estou angustiado e ansioso para voltar a fazer shows, mas é necessário se aquietar e esperar que as coisas voltem ao normal, tanto aqui quanto no mundo.

Está ansioso para vacinar?
Claro. Estou com 74 anos, sou do grupo de risco. A vacina pode vir de onde vier. Pode ser de Oxford ou da Cochinchina, desde que seja aprovada pela Anvisa, que estou com o braço pronto para recebê-la. A princípio devo me vacinar na próxima segunda-feira.

Pelo visto tem muita gente que não está preocupado com a covid-19?
Moro no Leblon e, daqui do meu apartamento, dá para ver a Praça Cazuza, próxima à Rua Dias Ferreira, cheia de bêbados irresponsáveis, muitos sem máscara que, pelo visto, acreditam estarem imunes ao contágio.

Que leitura faz do posicionamento do presidente da República em relação
à pandemia?
Sou contrário a tudo o que ele diz e faz. Como pode a maior autoridade do país ter demorado tanto a perceber o perigo que esta pandemia representa? E o que é pior, ser um negacionista. Já perdi muitas pessoas amigas por conta deste maldito vírus. Eu mesmo e outros familiares fomos contaminados, mas felizmente nos safamos.

Artistas de diferentes áreas padecem sem recursos até para sobreviver, por falta de incentivo à cultura vindo de órgãos governamentais. Você tem sido solidário aos seus companheiros de ofício?
Vejo claramente como esta situação tem afetado os artistas, principalmente as pessoas que atuam fora do palco. Os músicos e o pessoal da técnica, que trabalham comigo, não têm vínculo empregatício, mas busco ajudá-los neste período em que estamos sem atividade. Fiz uma live, com renda revertida para a União Brasileira de Compositores (UBC). Acredito que outros colegas estejam fazendo algo semelhante. Ouço pessoas ligadas ao governo falar mal de artistas que faziam uso da Lei Rouanet. Nunca me utilizei dessa possibilidade, mas a lei foi criada para ser utilizada por quem necessita.

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