A adaptação à educação a distância durante a pandemia foi um desafio para crianças e adolescentes de todo o país. Para estudantes disléxicos, com dificuldade de leitura, as barreiras foram ainda maiores. O dia a dia em sala de aula exige adaptações de métodos para atender esses alunos. No ensino remoto, os problemas foram ampliados.
Muitos estudantes com dislexia passaram a demonstrar desinteresse pelos estudos. Pais e professores precisaram arranjar maneiras de driblar os obstáculos impostos pela dislexia, ainda mais intensificados no contexto da pandemia.
De acordo com a fonoaudióloga Renata Monteiro, o disléxico precisa de adaptações, como mais tempo de prova e auxílio de ledores e escribas, além de ambiente silencioso para fazer provas e atividades. A mestra e doutoranda em ciência do comportamento pela Universidade de Brasília (UnB) explica que muitos disléxicos apresentam dificuldades no processamento visual.
“Ficar muito tempo sentado, olhando para uma tela e apenas ouvindo o professor gera angústia. A queixa dos pais tem sido de que os alunos não conseguem assimilar o conteúdo nem prestar atenção”, observa a fonoaudióloga com 21 anos de atuação, cinco deles apenas com dislexia.
Renata, que trabalha em atendimento clínico presencial e on-line no Ambulatório de Linguagens do Hospital Regional de Ceilândia (HRC), afirma que a demanda por atendimento aumentou muito durante a pandemia. “Muitos alunos não tiveram adequações, e os pais me procuraram sem saber como orientar a escola”, relata.
Ela esclarece que nem todas as dificuldades de aprendizado ao longo de 2020 têm a ver com a dislexia. “O diagnóstico precisa ser feito pelo menos dois anos após a alfabetização porque a criança pode não ter sido, ainda, alfabetizada completamente”, explica. Com a pandemia, a fonoaudióloga relata que muitos pais começaram a se queixar de que os filhos com alfabetização concluída no ano passado não estão lendo ainda.
“Estou orientando a intervir para ajudar a criança, mas sem fazer avaliação de dislexia ainda. Ano passado foi muito atípico, muitos estudantes não se adaptaram ao ensino remoto. É muito precipitado concluir um diagnóstico quando, na verdade, o processo de alfabetização pode não ter sido efetivo”, ressalta Renata.
Vantagens
A necessidade de esperar a alfabetização plena da criança não deve ser confundida com preguiça ou desinteresse em aprender. Maria Fernanda Mafra, 46 anos, mãe de Rafael Mafra Carvalho, 10, passou por essa confusão com o filho. “Desde o 3° ano do ensino fundamental, ele apresentava leitura lenta, dificuldade com palavras rebuscadas e letra cursiva, além de problemas em atividades motoras finas, como amarrar os sapatos e abotoar a camisa”, descreve a mãe.
A terapeuta ocupacional, moradora de Unaí (MG), admite que achava que era preguiça do menino. Foram necessários mais de um terapeuta para dar a palavra final: Rafael tem dislexia desatencional visual e auditiva. A fim de acelerar o reconhecimento da dificuldade do filho, a suspensão das atividades por causa da pandemia de covid-19 foi considerada positiva pela família. “Estando mais perto, em casa, vi a real dificuldade do Rafael”, conta Maria Fernanda.
“Agora, tem um nome. Tratar o problema ficou mais fácil”, percebe. Desde o diagnóstico, Rafael tem sido acompanhado por dois fonoaudiólogos, um psicólogo e uma psicopedagoga. “A autoestima da criança fica muito abalada”, reflete a mãe. As classes a distância foram muito complicadas para o garoto. “A reação dele foi muito negativa, chorou, dizendo que não queria mais assistir às aulas e que não conseguiria aprender”, relembra Maria Fernanda.
“Quatro horas de aula cansam qualquer criança. Para ele, que é disléxico, o cansaço era maior, ele ficava muito estressado. Às vezes, os colegas deixavam os áudios ligados e ele se incomodava muito com o barulho”, acrescenta. As provas de Rafael no ano passado foram feitas presencialmente, com a professora em casa.
Além disso, para as matérias com mais conteúdo, a docente fazia resumo por tópicos e enviava o material impresso antes da aula. “Neste ano, as apostilas vieram adaptadas, com algumas questões dissertativas transformadas em múltipla escolha e conteúdos em formato de mapas mentais”, exemplifica Maria Fernanda. Ela diz que os pais precisam ficar em alerta.
“Existem características que podem ser indícios, como trocas na escrita e na pontuação, ler sem entender, letra não legível, palavras faltando sílabas e dificuldades na ortografia”, elenca. “Não querer ir para a escola e começar a falar que são burros também podem ser sinais. É importante recorrer a ajuda profissional e exigir auxílio da escola. É um trabalho conjunto, os pais precisam ajudar em casa”, pondera.
Autonomia acompanhada
João Victor Moreira Cardozo, 16, recebeu diagnóstico de dislexia moderada aos 8 anos. A mãe Rosângela Rodrigues, 38, conta que o processo de descoberta do problema durou de três a quatro anos. “Ele começou a demonstrar sinais entre 5 e 6 anos de idade, como dificuldades em aprender a ler e escrever, mas a escola não tinha detectado. Fui atrás do pediatra e comecei a investigar. Ele faz acompanhamento há cerca de cinco anos”, relata Rosângela, que é dona de casa.
Em 2020, João cursou o último ano do ensino fundamental, inteiramente de maneira remota. As dificuldades de aprendizado foram agravadas pelas aulas a distância. “Tenho dificuldades de entender o conteúdo durante as aulas porque, às vezes, eu travo e não consigo me concentrar”, relata o estudante, que cursou o ano letivo de 2020 no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 4, em Ceilândia. “Durante a aula, quando eu não entendo, fica difícil pedir para a professora repetir, porque somos muitos alunos”, completa.
Um dos grandes dilemas de Rosângela está em deixar João guiar as próprias decisões. “Médicos, psicólogos, profissionais e professores diziam que ele precisa ter autonomia e buscar a própria independência. Então, eu deixei. Aí vieram as notas baixas, ele não fazia as tarefas. Eu precisei voltar a acompanhar de perto e, só assim, ele passou de ano, mas quase reprovou. É preciso ter muita paciência e sabedoria”, reflete a moradora de Ceilândia.
Para João, as aulas remotas intensificaram dificuldades. “Eu não consigo fazer as tarefas de casa sozinho porque não aprendo os conteúdos das matérias”, relata o jovem. A mãe destaca que, apesar da excelência da escola, o ensino remoto não foi suficiente para cativar a atenção do filho. “O colégio era bem presente e a equipe era muito dedicada. É uma escola pequena, então há acompanhamento de perto, com reforço individualizado. O professor me ligava e passava orientações, o diálogo era bem aberto”, elogia Rosângela, explicando que, por ter passado para o ensino médio, o filho precisou mudar de escola.
Apesar do ano complicado, Rosângela mantém o otimismo e o apoio ao adolescente. “É necessário ter paciência e não desistir dos nossos filhos porque tem solução, todos nós passamos por dificuldades. Os disléxicos são gênios, eles só não conseguem transpor nem expressar toda a inteligência”, completa.