Em feitio de oração
O mineiro Carlos Bracher é um dos grandes artistas brasileiros vivos. Ao sair de uma de suas exposições, sob o impacto da beleza dramática, Carlos Drummond de Andrade disse: “Encontrei-me com Minas Gerais através da pintura de Carlos Bracher. É o maior elogio que, de coração, lhe posso fazer. Viva Minas!” Mas, além de grande pintor, Bracher é um escritor de fluência barroca torrencial.
As suas palavras são tão dramáticas e convulsivas quanto as suas pinceladas. Quando irrompeu o coronavírus, Bracher escreveu uma Carta à Humanidade, que, em seguida, se transformou em vídeo, dirigido pela filha Blima Bracher. É uma mensagem utópica que nos atinge em cheio com a luz da poesia. Ouçamos trechos dessa carta em feitio de oração.
“Depois dessa dramática devastação mundial, vimos em dias e meses, a nossa imensa precariedade em que ricos e pobres foram jogados na vala comum da exata fatalidade. Ninguém pode vangloriar-se sozinho, nem as nações mais desenvolvidas, quando todas tiveram as suas fronteiras fechadas. Doravante, nunca seremos mais os mesmos, haverá um laço entre nós, um elo como brado de alerta na humanidade.
Está claro, clarividente na pele, que haveremos de ter postura diferente e que somos igualmente frágeis, até os mais poderosos, unindo-nos um nível de súplicas, clemências e medos individuais e coletivos. Esse é o maior sinal que jamais se viu.
Daqui por diante, será um novo mundo que deixaremos para o Valentim, meu neto de 9 anos. E a todos os seres que virão, nossos filhos, netos e bisnetos. Haveremos de renascer dos escombros, das cinzas erradas de milênios, de princípios cegamente materialistas, ambições desenfreadas, concorrências, dissidências e egoísmos nacionalistas.
Após o coronavírus, chegou o desafio de uma grave reflexão: quem somos, o que somos e o que queremos como entes. São perguntas longas e respostas mais longas ainda. Evidente que os valores não poderão ser mais medidos simplesmente pelos PIBs, lucros, gráficos e estatísticas técnicas frias, porém de receber com olhos de compaixão as crianças morrendo no Brasil, na África e em outros continentes de fome, sob os nossos frívolos olhares, enquanto incalculáveis riquezas bilionárias acumulam-se aprisionadas em poucas mãos.
E que deveriam ser redistribuídas, pelo menos em parte, pela sensatez de seus detentores para ajudar causas sociais, éticas e humanitárias. Senão seremos tragados por novos coronavírus, Aids, ebola, H1N1 e outras tragédias.
De tanto se ver vilipendiada, corroída e dizimada por incêndios, devastações, desmatamentos, secas, poluição de ares e mares, a natureza deu o troco, impondo-nos vórtices terríveis como um cheque-mate derradeiro. E aí, homens e mulheres, o que querem e onde desejam ir?
Os governantes terão de alterar seus propósitos e não fazer discursos demagógicos. Apenas precisam investir fortemente em educação, ciência, tecnologia, saúde, pesquisas e programas efetivos que possam mudar o destino das gentes.
Precisamos de arte e não de armas. Temos de liberar a vida e não a morte. Os artistas são as células oníricas da resistência. Porque um povo se mede por suas glórias artísticas, científicas, filosóficas e por seus prêmios Nobel conquistados. As civilizações não vão reger-se pelo valores duvidosos do dinheiro, mas pelo espectro imunizado do amor.”