A constatação de que a variante britânica do coronavírus está em circulação a menos de 40km do Distrito Federal, em cidades do Entorno, reforça a importância não só da vigilância epidemiológica, mas também do trabalho científico de sequenciamento do genoma do vírus. Na Universidade de Brasília (UnB), grupo composto por mais de 30 pesquisadores de seis programas de pós-graduação estuda o Sars-Cov-2 desde o início da pandemia e faz parte de força-tarefa nacional para desvendar diferentes faces do patógeno — de tratamentos eficazes à possibilidade do surgimento de novas epidemias.
O sequenciamento é o que indica, por exemplo, se existe nova cepa em circulação no país. A agilidade, portanto, representa elemento chave nesse processo, para que as pessoas infectadas sejam isoladas e acompanhadas por equipes de vigilância epidemiológica e não contagiem mais habitantes. “Em Brasília, poucas cepas foram sequenciadas até agora. Mas, como o transporte não parou, muito provavelmente essas cepas que estão circulando no Amazonas, no Rio de Janeiro e em outros estados circulam aqui também. É questão de ir atrás”, avalia o virologista Bergmann Morais Ribeiro, professor titular do Instituto de Ciências Biológicas da UnB, à frente do Laboratório de Bacilovírus, responsável pelo sequenciamento.
“Por isso é importante esse projeto, para descobrirmos o mais rápido possível o que está acontecendo aqui e sermos autônomos. Estamos tentando transferir essa tecnologia para o sistema público, com o objetivo de termos essa resposta mais rapidamente”, resume o pesquisador. Ele reforça, ainda, que há possibilidade de a covid-19 se tornar uma doença endêmica, ou seja, que provoca novos casos com frequência ao longo do tempo, como ocorreu com o vírus HIV e os causadores da dengue, zika e chikungunya.
Em parceria com o Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen-DF), a partir de financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa (FAP-DF), a equipe do pesquisador pretende sequenciar, pelo menos, 150 genomas do coronavírus (leia Cinco perguntas para). Apesar de o laboratório conseguir identificar as novas cepas, a confirmação só ocorre após processamento pelos institutos de referência, conforme define o Ministério da Saúde. Entre eles, estão o Adolfo Lutz, em São Paulo, e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Para esta última, foram enviadas, por exemplo, amostras de três casos suspeitos de reinfecção no DF, em análise.
Vigilância
O sequenciamento de genomas faz parte do trabalho laboratorial da vigilância epidemiológica. Segundo o professor de epidemiologia da UnB Mauro Sanchez, essa vigilância é uma vertente da Secretaria de Saúde do DF responsável pelo monitoramento e fornecimento de dados sobre a pandemia. “É uma área muito importante, pois permite que as autoridades saibam como e onde colocar recursos humanos, financeiros e materiais para combater o avanço do vírus na cidade. Além de calcular o número absoluto de casos, a vigilância epidemiológica demonstra qual a incidência da doença, ou seja, qual o risco de se adoecer, por meio do cálculo de casos a cada 100 mil habitantes”, diz.
Além disso, Sanchez afirma que o trabalho da vigilância epidemiológica, em parceria com outras vertentes da Saúde, também é essencial para o monitoramento de novas cepas da covid-19 que, possivelmente, já estão em circulação no DF. “Por meio do acompanhamento dos casos, as autoridades e os profissionais de saúde podem identificar o surgimento de novas infecções e, por meio do rastreamento de contatos, cortar a cadeia de transmissão da nova cepa”, esclarece.
Para isso, é necessário que, quem teve contato com um infectado ou esteja com suspeita, fique em isolamento por cerca de duas semanas, até que a infecção se confirme ou seja totalmente descartada. Todos que tiveram contato com essa pessoa por alguns dias antes do início dos sintomas também devem ser isolados. “Assim, evitamos que o vírus continue se espalhando”, completa Sanchez.
Testes
Até as 23h do último sábado, o Lacen-DF havia realizado 191.881 testes de RT-PCR — exame para detecção do novo coronavírus — desde o início da pandemia. Durante este período, 124.228 foram negativados; 62.577 apresentaram resultado positivo e 5.076, inconclusivo.
Apenas este mês, foram mais de 6 mil amostras recebidas, sendo 1.970 positivas; 4.212, negativas; e 389, inconclusivas. O prazo médio em que o Lacen-DF tem divulgado os resultados é de um dia. Até a meia-noite de ontem, o laboratório estava aguardando o processamento de 252 exames.
Virologista explica a importância do sequenciamento do genoma do coronavírus
Cinco perguntas para Fernando Lucas de Melo, virologista e bolsista sênior da FAP-DF responsável pelo sequenciamento e análise das amostras em parceria com o Lacen
Qual a importância do sequenciamento do genoma do vírus para o acompanhamento da pandemia?
Quando investigamos o genoma, conseguimos descobrir uma série de informações sobre a história de uma linhagem. Consigo dizer quais mutações estão acontecendo e, quando comparo com amostras mais antigas, dizer se é igual ou diferente. Se vejo genomas aparecendo e aumentando em frequência eu posso correlacionar: será que esse vírus causa formas mais graves da doença? Será que escapou ao sistema imune e está causando muito mais infecções? Então, eu crio hipóteses para que novos estudos aconteçam.
Por que identificar essas mutações é um dos resultados mais importantes do sequenciamento?
A mutação isolada de um vírus não significa muita coisa. A partir do momento que começo a ver a recorrência dessas mutações e o aumento de frequência, começo a entender o que o vírus ganhou de vantagem em relação à linhagem antiga.
Que tipo de tecnologia é necessária para o sequenciamento? É cara? Que dificuldades os pesquisadores do país encontram?
É preciso estar preparado, porque é o tipo de coisa que leva tempo. São cerca de quatro ou cinco meses para o reagente chegar ao Brasil, por exemplo. Então, uma das dificuldades é a importação de material. Deveria haver menos restrição de imposto e de importação, além de mercado nacional para a entrega. Porém, o investimento em ciência reduziu tanto que a empresa não mantém estoque de materiais no Brasil, pois não tem garantia nenhuma de que vai vender. Isso tudo causa atraso.
Que legado acredita que a pandemia pode deixar para a ciência no Brasil?
Serviu para criar vínculos institucionais, coisa que não tínhamos antes. Às vezes, não tínhamos ideia da estrutura dos laboratórios. O Lacen-DF, por exemplo, está no mesmo nível de entrega de resultados de laboratórios particulares. Espero que esse vínculo se mantenha para a resolução de outros problemas no futuro.
Por que é importante a população ficar atenta às medidas de isolamento?
Se a epidemia não for controlada, a chance de aparecerem novas cepas só aumenta. Se elas continuam surgindo, é porque os casos continuam aumentando. Isolamento social e máscara são medidas que funcionam para o controle de variante. Quanto menor o número de casos, menor o de variantes.
Para saber mais
Esforço amplo
Além do projeto de sequenciamento do genoma do novo coronavírus financiado, o grupo de pesquisadores do Instituto de Ciências Biológicas da UnB participa de outros editais voltados para pesquisas sobre a covid-19, como os da Capes, do CNPq e da rede Corona-ômica BR, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Esta última iniciativa reúne cientistas também do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas, Minas Gerais e Tocantins. O projeto estabelece uma rede de laboratórios descentralizados para captação e sequenciamento genômico de amostras de Sars-CoV-2. Na UnB, pesquisadores do Instituto de Química, do Departamento de Ciências da Computação e da Faculdade de Saúde também desenvolvem outras frentes de estudo sobre o vírus, entre elas a de tratamentos para a covid-19.
Preocupação com variante no Entorno
A descoberta da variante britânica do novo coronavírus em Valparaíso de Goiás e em Luziânia (GO) preocupa moradores das duas regiões. Antônio José, 62 anos, açougueiro e morador do Valparaíso 1, conta que segue as recomendações, mas que o receio é grande. “Eu só vou ao supermercado e, ainda assim, de carro. Fico bem isolado, dentro de casa. Mas não é todo mundo que segue isso.”
Para Dalva Braga da Silva, 64, cozinheira e moradora do Parque Rio Branco, no Valparaíso 2, falta a cooperação dos cidadãos para vencer o vírus. “A coisa está tão feia e o pessoal não faz sua parte no distanciamento, na limpeza. A gente só vê as pessoas nas ruas sem máscaras. A gente tem que fazer por onde, pedir a Deus para ele nos ajudar, mas fazer a nossa parte”, defende.
Em Luziânia, a percepção é semelhante. A estudante Patrícia Feliciano, 22, diz que, quando recebeu a notícia da nova variante, ficou bastante preocupada. O alento é saber que ao menos a sua avó, Noêmia Porfíria, 77, foi vacinada. “Mas só vou ficar realmente em paz quando ela tiver recebido também a segunda dose da vacina.”
Já a estudante e moradora do Jardim do Ingá (GO), Cristiny Alkmim, 23, que faz estágio na área central de Brasília, revela que segue as orientações, mas não se sente totalmente segura devido ao transporte público. “Uso máscara, álcool em gel e quando chego em casa vou direto tomar banho. Mas, para quem precisa pegar ônibus lotado todos os dias, é complicado não se aglomerar. E se torna mais assustador ver as notícias e encontrar tanta gente que faz pouco caso da situação crítica que estamos vivendo”, lamenta.