BRASÍLIA DE OUTROS CARNAVAIS

Tradição carnavalesca em Brasília nasceu antes mesmo da capital; relembre

Primeira reportagem da série especial conta como nasceram as festas no DF, as histórias marcantes e como a nova capital inspirou marchinhas na folia do Rio de Janeiro

Brasiliense adora um carnaval. Prova disso são as multidões que os bloquinhos têm arrastado nos últimos anos. Mas se engana quem pensa que a folia é coisa recente por aqui. Antes mesmo de a capital ser inaugurada tinha gente fazendo a festa acontecer: operários e autoridades que viviam nos acampamentos celebravam a data ao som dos tamborins no improviso.

As comemorações pré-inauguração ocorriam, principalmente, porque naquela épocas os candangos não tinham como viajar para passar o feriado fora. “Há relatos de comemorações de carnaval ainda durante a construção da nova capital, entre os anos de 1958 e 1960. Relatos de pioneiros fazem referência a festas que ocorriam nos salões de acampamentos e no Brasília Palace Hotel naquele momento. Além disso, trabalhadores também contam com entusiasmo como se organizavam para participar das festas em Luziânia e Planaltina”, explica Cristiane de Assis Portela, professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do projeto Outras Brasílias: ensino de história do DF a partir de fontes documentais.

No ano da inauguração da capital, os foliões também faziam festa no que hoje é o Núcleo Bandeirante. “Em 1960, um pouco antes da inauguração, alguns poucos foliões se reuniam na Travessa Dom Bosco, inaugurando a Festa do Momo na capital, e levando a leveza do carnaval para a Cidade Livre, diante de uma população que já se angustiava com a proximidade da data que prenunciava a extinção daquela cidade provisória”, acrescenta Cristiane.

A tradição dos bailes

Após a inauguração da nova capital, em 1960, o espírito carnavalesco realmente tomou conta de Brasília. A então prefeitura começou a promover a festa de Momo no Baile da Cidade, que ocorria no Hotel Nacional, a partir de 1962.

A folia era tão grande que até atrações de Hollywood estiveram presentes nos primórdios do carnaval brasiliense. No primeiro ano, a atriz Rita Hayworth foi a atração de um baile de máscaras. No ano seguinte, esteve por aqui, no Baile da Cidade, o ator Kirk Douglas, conhecido por Spartacus, Glória Feita de Sangue e A Montanha dos Sete Abutres.

As festas em clubes, muito comuns até os anos 2000, ocorriam em vários locais, como no Brasília Palace Hotel, na Travessa Dom Bosco e nas boates da Cidade Livre, atual Núcleo Bandeirante. Até o Teatro Nacional, ainda em construção, foi palco de celebrações momescas.

Arquivo Público - Carnaval em clubes nos anos 60
Arquivo Público - Carnaval em clubes nos anos 60
Arquivo Público - Kirk Douglas curte o carnaval em Brasília
Arquivo Público - Rita Hayworth curte o carnaval em Brasília

O samba presente

Em 1961, apenas um ano após a inauguração de Brasília, um grupo de cariocas fundou a primeira escola de samba da nova capital, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc). Com quase a mesma idade de Brasília, a escola é hoje Patrimônio Cultural Imaterial do DF e detém o título de octacampeã do carnaval.

O primeiro desfile veio no ano seguinte, com a W3 servindo de avenida. Além da Aruc, desfilaram outras quatro escolas: Alvorada em Ritmo, Brasil Moreno, Nós somos candangos. e Unidos de Sobradinho. Nos anos seguintes, os desfiles mudaram para a plataforma superior da Rodoviária. Em 1967 voltaram a ocorrer na W3. Em 2005, os desfiles das escolas de samba ganharam um local oficial, o Ceilambódromo, em Ceilândia.

Arquivo Aruc - Desfile da Aruc
Arquivo Aruc - Desfile da Aruc
Arquivo Aruc - Desfile da Aruc
Arquivo Aruc - Desfile da Aruc
Arquivo Aruc - Desfile da Aruc
Agência Brasília - Sala de troféus da Aruc
Agência Brasília - Sala de troféus da Aruc

Tragédia de carnaval

Porém, o carnaval de Brasília não ficou marcado na história só por momentos felizes. Em 1959, quando a capital ainda era construída, um episódio controverso deixou marcas até hoje. Em 8 de fevereiro de 1959, uma tragédia aconteceu em umacampamento de obras na Vila Planalto. O caso ficou conhecido como “Massacre da GEB” ou “Massacre da Pacheco Fernandes”.

Naquele dia, policiais foram chamados para atender a um desentendimento entre trabalhadores que reclamavam da comida ruim no refeitório. A versão oficial diz que a chegada da polícia resultou em um morto e alguns feridos. Os números, porém, são controversos. Ainda hoje, existe a versão de que, na verdade, teriam sido dezenas de mortos. “Podemos afirmar que o massacre ocorrido naquele momento é um fato histórico, já que apresenta indícios de sua ocorrência: pelo menos um telegrama, um inquérito oficial, duas reportagens de jornal da época, malas abandonadas no acampamento, algumas declarações de gestores que admitem a decisão por impor um silêncio oficial, e, como contranarrativas, relatos orais de muitos trabalhadores”, destaca a professora.

Cristiane pontua que aquele episódio foi um estopim das condições desumanas a que os candangos eram submetidos, como má alimentação, falta de água e exaustivas jornadas de trabalho. “Já que nem tudo é festa, o ‘Monumento aos candangos mortos’, em uma praça na Vila Planalto, nos lembra o que não devemos esquecer: que a memória importa e que as narrativas históricas estão ali para serem disputadas. As memórias de outros carnavais não nos dizem somente dos bons carnavais”, arremata.

Brasília como inspiração

Embora por aqui o carnaval ainda fosse pequeno no início dos anos 1960, Brasília marcava presença em uma folia bem maior, sendo cantada em marchinhas no Rio de Janeiro. A expectativa em torno da mudança da capital foi traduzida em versos nas folias da virada da década.

Em 1957, Wilson Batista, Antônio Nássara e Jorge de Castro cantaram sobre a aflição de deixar o Rio de Janeiro e partir rumo ao interior do país, no meio do Goiás. “Seu doutor, tá legal/ Chegou a hora de mudar a capital/ Ai meu Rio ... meu Rio de Estácio de Sá/ Adeus Pão-de-Açúcar e Corcovado/ Eu também, eu também vou pra lá/ Vou deixar velhos amigos/ Pois sempre fui um bom rapaz/ Adeus, minha Copacabana/ Meu amor também vai para Goiás.”

No ano seguinte, foi a vez de José Rosas e Jorge Veiga cantarem sobre as promessas de como seria a nova capital. “Ai Brasília/ Brasília é um mundo novo/ Você precisa ver JK falando ao povo/ Vou me embora e não levo saudade da Guanabara/ Vou me embora pra Brasília/ Pois Brasília é jóia rara/ Aquilo é um paraíso, Leoni me falou/ Me leva, me leva, seu presidente que eu vou.”



E se o assunto é música, talvez 2021 seja um bom ano para relembrar o samba-enredo da Aruc em 1985: “Não adianta lamentar, temos mais é que sorrir. Levante a cabeça, olhe para cima, sacode a poeira e dê a volta por cima”.



Brasília pode não ser conhecida por ter o maior carnaval do Brasil, mas quem é daqui já sabe que nem precisa sair do quadradinho para curtir uma boa festa. Que toda essa alegria volte logo.

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