Crônica da Cidade

Aeroporto Glauber Rocha

“Senhoras e senhores, mantenham os encostos das poltronas na posição vertical e suas mesas fechadas e travadas. Dentro de alguns instantes estaremos pousando no Aeroporto Glauber Rocha, em Vitória da Conquista.” Poucos dias antes das eleições municipais de 2020, o professor e editor baiano Rosel Soares, da Editora Casarão, levou um susto ao pegar um Ita nos ares do sul rumo a Bahia.

Na verdade, ele ia para Anajé, pequeno município baiano, mas o aeroporto mais próximo era o de Vitória da Conquista, cidade em que nasceu o cineasta Glauber Rocha. Rosel queria que o avião arremetesse só para ouvir novamente o anúncio da aeromoça e se comover com este que lhe parece ser um dos gestos mais acertados na história do reconhecimento humano.

Se excetuarmos o Tom Jobim, no Rio de Janeiro, onde mais se vê homenagens a grandes artistas e seus feitos em nosso país? Rosel se viu, então, fazendo esse voo imaginário e sensorial ao dia em que, vivendo em Anajé, recebeu pelos Correios o exemplar de O pensamento vivo de Glauber Rocha (cada frase de Glauber soa sempre como uma bomba que não para de ecoar).

Lembrou, também, das imagens de um comovido Martin Scorsese falando da influência que os filmes de Glauber exerceram sobre sua maneira de fazer cinema e de ver o mundo, o que, no fundo, é a mesma coisa. “Tornei-me tão obcecado com O dragão da maldade contra o santo guerreiro que passei a dar cópias do filme para amigos, músicos e atores... se eles merecessem, claro.”

É bem isso, Scorsese, é preciso merecer Glauber Rocha, concorda Rosel. Vitória da Conquista, pelo visto, finalmente está aprendendo a lição de merecer seus artistas. Glauber foi um artista não apenas baiano ou brasileiro, mas também internacional.

Realmente, Glauber merece ser nome de aeroporto, pois foi um baiano voador. Seus voos rasantes colocaram um teto alto para a cultura brasileira. Chamou Vladimir Carvalho de Vertov das caatingas, sem saber que o camarada paraibano já havia se convertido em Vertov do cerrado. Dizia sobre os jogadores de futebol no Brasil: “Eles têm uma bola de capotão número cinco na cabeça. Se der um furão, sai apenas vento”.

Glauber filmou, freneticamente, em Brasília, as cenas do Krysto Negro, do filme A idade da Terra. É o personagem glauberiano mais incisivo para este momento da história brasileira e brasiliana. O Krysto Negro, Krysto Zumbi dos Palmares, é o Krysto que ressuscita no Terceiro Mundo para fazer a revolução da justiça e do amor. Vem para expulsar os vendilhões da fé: “Não acredito no Cristo crucificado. Acredito no Cristo ressuscitado no êxtase do amor. A morte é uma invenção da direita”.

Enquanto o Krysto Negro atravessa a Ponte das Garças no Lago Sul, com uma cruz às costas, Glauber delira sobre Brasília com a voz em off: “Metáfora que não se realiza na história, mas preenche um sentimento de grandeza”. Envolvido em roupas africanas de cores vibrantes, no topo da Torre de Televisão, açoitado pelos ventos uivantes do planalto, sob o fundo espacial de Brasília, o Krysto Negro berra: “Benditos os miseráveis, pois um dia eles se libertarão. Bendita a bomba atômica, a grande prostituta da Babilônia”.

Em outra cena, o Krysto Negro prega o sermão no deserto do cerrado, atrás do Palácio do Planalto, que aparece apenas sob uma leve silhueta. Prega para ninguém, mas a sua voz ressoa em nós, neste momento em que Brasília vive, talvez, o momento mais distópico de sua história: “Construiremos uma nova nação. Acorda, humanidade! Acorda, humanidade!”