COTIDIANO

Conheça as histórias de nordestinos que enriquecem a cultura do DF

Segundo dados da Codeplan, mais de 640 mil nordestinos vivem no Distrito Federal. Eles ganharam, inclusive, uma data especial no Calendário Oficial de Eventos DF, que será celebrada durante o mês de maio

Ana Maria Silva
postado em 19/02/2021 06:00
 (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)

Há mais de 60 anos, migrantes de todo o Brasil chegaram ao cerrado para a construção da nova capital. Com eles, trouxeram diferentes sotaques, músicas próprias, temperos e aromas. Trabalhadores que deixaram a terra de origem sem abandonar a essência que os ligavam ao solo em que nasceram. Para amenizar a distância, doaram seus hábitos e cultura a uma cidade que ainda não tinha identidade.

No quadradinho, cabe gente de todo lugar. Entre os que aceitaram o convite de Juscelino Kubitschek, muitos eram nordestinos, que carregavam só uma mala de sonhos e de tradição. Eles trouxeram na bagagem um vocabulário charmoso e um jeito típico de contar as próprias histórias: cantando, desenhando ou escrevendo os poemas de cordel. Segundo dados da Codeplan, em 2018, mais de 640 mil pessoas da região viviam no Distrito Federal.

Com o intuito de valorizar essa presença tão marcante, já enraizada em todos os cantos da capital, o Executivo local sancionou, em janeiro, uma lei que inclui no Calendário Oficial de Eventos DF o “Encontro Nordestino”. A data, a ser celebrada durante o mês de maio, tem como objetivo potencializar a essência da cultura do Nordeste por meio das mais diferentes manifestações artísticas. A autoria do projeto é da deputada distrital Jaqueline Silva (PTB).

Natural de Sumé (PB), o cantor e sanfoneiro Luiz Gonzaga da Rocha, 65 anos, conhecido como Luizão do Forró, conta que mudou-se para Brasília em busca de trabalho. “Eu já tinha parentes aqui no DF, então, não foi tão difícil. Fui trabalhar como ajudante de pedreiro”, lembra. Luiz explica que a música sempre foi sua paixão. “Eu já tocava acordeon em Sumé. Então, na hora do almoço eu tocava, e até o engenheiro responsável pela obra vinha assistir o forró, e foi se espalhando. Aos poucos, também fui pegando conhecimento com outros músicos”, recorda.

“Sai do Nordeste pelo mesmo motivo que os nordestinos daquela época iam para São Paulo ou Rio de Janeiro. Porque são locais com mais poder de trabalho”, diz. Ao chegar a Brasília, Luiz escolheu Ceilândia para morar. “É uma das mais legais e populosas regiões administrativas. Para minha sorte, aqui tem quase tudo que há no Nordeste, e aqui eu me sinto bem, visse?”, reforça.

Reduto nordestino

Luiz é só mais um dos milhares de nordestinos que abraçaram Ceilândia. São quase 70% da população local, entre baianos, cearenses, maranhenses, pernambucanos e piauienses, estes últimos com a maior representatividade no quadradinho. Uma realidade muito visívelpelas ruas da cidade que, no último dia do ano de 2019, foi declarada a Capital da Cultura Nordestina do DF, por meio da Lei nº 6.474, sancionada pelo então governador em exercício, Paco Britto.

Para manter a memória da cultura nordestina viva na capital federal, Luiz diz que busca não fugir de sua identidade, “que é o forró que aprendi a desenvolver”. Para o nordestino, a cultura tradicional é pura e original. “As pessoas podem levar seus filhos, de zero a cem anos, para assistir shows nordestinos, e isso é tudo de bom”, complementa.

História em madeira

Arte milenar, a xilogravura dá forma ao imaginário nordestino. A técnica, de origem chinesa, transforma madeira em personagens, e encanta os amantes da literatura poética em forma de cordel. Valdério Costa, 54, é natural de Natal, e entrou no mundo da xilogravura por causa do amor pela ilustração. O artista veio morar na capital federal ainda criança, e encontrou na técnica uma forma de preservar suas origens.

Em busca de estudo, o artista deixou a cidade de origem e foi morar com a irmã, no Guará 2. Formado em artes plásticas pela Universidade de Brasília (UnB), o professor da Secretaria de Educação do DF utiliza a arte para valorizar a cultura nordestina e para repassar a tradição aos alunos. “A cultura nordestina e sua rica diversidade é sempre um motivo de deslumbramento, de admiração e de estudo para mim. Esse interesse e essa influência se renovam cotidianamente nas obras que eu produzo e exponho”, explica.

Por meio dos traços em madeira, Valdério busca representar a beleza da cultura nordestina. “A importância do meu trabalho perpassa este constante resgate das minhas raízes, da arte popular e essa busca por uma dualidade entre o erudito e o popular”, diz. “As pessoas, talvez, enxerguem no meu trabalho um reflexo estético das manifestações autênticas do nosso país. Talvez, se reconheçam nas temáticas abordadas, e acho que Brasília representa bem uma junção de sotaques, sabores e heranças culturais”, complementa o artista.

Amor incondicional

Após se casar, a empreendedora Noilda Tavares, 65, veio viver seu final feliz no coração do planalto central. A vida estável de seu marido trouxe a nordestina, natural de Piancó (PB), para construir a família e se estabelecer no seio da capital. Para isso, Noilda diz que trouxe um pouco de sua bagagem cultural. “Como uma boa nordestina, somos criados no sertão, ouvindo e vivenciando aquelas coisas típicas do Nordeste, como o forró, o São João e o folclore. E eu fui criada vivendo isso”, diz.

Proprietária do Bar do Otávio, em Ceilândia, Noilda começou a cuidar do restaurante junto com o marido e incluiu no menu as comidas típicas do Nordeste. No cardápio da casa, além de uma boa cerveja gelada, buchada e cabrito direto da Paraíba, carne de sol com mandioca, baião de dois, arroz de leite, feijão-de-corda, caldos diversos e, no final, uma boa sinuca para distrair e relaxar.

Para Noilda, o mais belo da cultura é a alegria do nordestino. “Se vai para um forró, ele contagia quem está por perto. Pense em uma pessoa aporrinhada se ver alguém falando mal do meu Nordeste, da minha cultura? Ai o aperreio é grande, está pedindo por uma arenga, pode vir pronto, porque a coisa é feia”, alerta.

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Dicionário Nordestinês

Aperreado: nervoso
Aporrinhar: fazer raiva, atrapalhar
Arenga: briga
Visse: compreende

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