Na quarta-feira (10/2), Guilherme Santos, 28 anos, encaixotava alguns pertences para deixar a casa alugada em Ceilândia e retornar às calçadas do Setor Comercial Sul (SCS). Sem os R$ 600 do auxílio emergencial, o vendedor ambulante não consegue mais pagar por um lugar para morar. Todos os meses, o esforço é na direção de fazer o dinheiro render. Ele soma o que recebe do Bolsa Família, do DF Sem Miséria, do Cartão Prato Cheio, além do que ganha vendendo doces no semáforo. No entanto, na matemática do cotidiano, é difícil fazer os recursos sobrarem. Além dos gastos com itens básicos, Guilherme envia R$ 250 para ajudar a mãe, em Luziânia (GO). "Com esse cálculo, não dá para ter uma alimentação saudável, pagar água, luz e aluguel", relata.
Diante do contexto de crise, o ambulante passou a depender do trabalho de organizações não governamentais (ONGs) e coletivos para conseguir o que comer. "Houve um camarada que trouxe McDonald's para a gente, coisa que ninguém nunca viu. Mas, hoje, está bem complicada a situação. Chegou agosto, e (as doações) foram diminuindo. Infelizmente, Brasília não é para pobre", sentencia. "Não estamos em situação de vulnerabilidade, mas de extrema vulnerabilidade", observa Guilherme.
As instituições que atendem a essa população viram a arrecadação de doações despencar nos últimos meses. O Conselho de Entidades de Promoção e Assistência Social (Cepas DF), que reúne 67 organizações do Distrito Federal, lamenta a situação. No primeiro trimestre do ano passado, houve distribuição de R$ 42,5 mil às ONGs para compra de cestas básicas. Neste mês, o montante não chegou a R$ 2 mil.
Dificuldades
A ONG Projeto Dividir começou os trabalhos justamente por causa da emergência sanitária, em março. Com o dinheiro arrecadado, o grupo chegou a distribuir 500 cestas básicas por mês a famílias em vulnerabilidade, além de 160 marmitas por dia a pessoas em situação de rua. "Ficamos muito surpresos quando recebemos tanta doação. Não esperávamos que confiariam tanto (no trabalho da organização)", conta Sofia Amouk, sócia-presidente da instituição. Hoje, não passam de 35 as marmitas distribuídas em três dias da semana. "O mais difícil tem sido essa negativa constante às famílias; elas pedem, e não temos como ajudar. O dinheiro não está entrando", lamenta Sofia.
A psicóloga Gorete Rocha, da Clínica Terapêutica Virtude, explica que o início da pandemia despertou a solidariedade por se tratar de algo novo. "Essa questão social, de um público na invisibilidade, fica muito nítida. Isso fez com que muitas pessoas se engajassem para doar", comenta. Agora, porém, o cenário é outro. "Ser solidário parece que tem um prazo de validade. A partir do momento em que a pandemia se estendeu, de alguma forma, as pessoas foram ficando mais individualistas, pensando na própria situação. A empatia vai se dissipando", afirma.
O que as instituições observam é parecido: as contribuições atingiram o pico na fase mais crítica do contágio no DF. "Entre junho e agosto, houve o período de mais doações. Precisamos de um galpão na Ceasa (Central de Abastecimento do Distrito Federal), para armazenar tudo", conta o presidente distrital da Central Única das Favelas (Cufa), Bruno Kesseler. O grupo, que existe há mais de 20 anos na capital federal, apoiou 100 mil famílias na pandemia, em 17 regiões da capital federal. "Se todo mundo ajudar com pouco, a gente consegue ter um volume maior. Cada pessoa que conseguimos ajudar é muito relevante", diz Bruno.
Para Sofia Amouk, a redução de medidas de isolamento social contribuiu para a diminuição de doações. "Tem essa sensação de normalidade, com a flexibilização de tudo", pondera. "Em dezembro, há muita fartura de doações, roupas e produtos; restaurantes fazem ceias, muita gente ganha cesta básica. Mas, em janeiro, não entra quase nada", ressalta Giselle Lima, responsável pelas doações do Instituto No Setor.
Economia
Com a suspensão das atividades a partir do início da pandemia, Gilberto Silva, 48, precisou demitir funcionários e reformular a firma de limpeza que administra. O padrão de vida do empresário — que, agora, atua de maneira autônoma — mudou totalmente: "O último evento que fiz foi o carnaval no Setor Comercial Sul. Tinha 30 mil pessoas. Foi a despedida. Fiz um dinheiro bom. Mas, de repente, meu padrão de vida desabou", conta. Dos R$3,5 mil que ganhava por mês, hoje, consegue R$ 1 mil, pouco menos que um salário-mínimo (R$ 1,1 mil).
As três filhas de Gilberto estranharam: "Pai, por que estamos assim?", uma delas perguntou. Durante três meses, a família conseguiu doações de cestas básicas. Depois, a ajuda cessou. "Servia muito. Vinha muita coisa boa para as crianças. Cinco quilos de arroz fazem diferença naquilo que você não vai gastar no fim do mês", afirma Gilberto. "A gente passa mais de um mês comendo ovo, sardinha e frango. Tem de optar por coisas mais baratas. Estou comendo tanto ovo que, daqui a pouco, vou bater asas e voar", brinca. "Eu tenho de pagar aluguel, comer e, com a carestia das coisas, a situação fica difícil. Você ganha R$ 1 mil, mas é como se ganhasse R$ 500, porque o preço das coisas aumentou", destaca o empreendedor.
O cenário econômico dá indícios das dificuldades enfrentadas pela população mais vulnerável. No ano passado, houve fechamento de 11,3 mil postos de trabalho no Distrito Federal, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério da Economia. Dados da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) também revelam que a alta nos preços nos nove primeiros meses de 2020 — especialmente dos alimentos —, penalizou, sobretudo, as famílias de renda mais baixa. Para completar, em 31 de dezembro, 793.945 pessoas elegíveis para receber o auxílio emergencial deixaram de contar com o benefício no DF.
Sem perspectivas de quando a pandemia deve acabar, o papel desenvolvido por ONGs e coletivos é crucial, segundo o economista Newton Marques. "O fosso entre pobres e ricos está aumentando com essa pandemia. Aqui no DF, isso é flagrante por causa da renda per capita", avalia. "Um projeto de lei para garantir o mínimo para as organizações é um investimento, não um gasto. Elas conseguem chegar a localidades onde o governo não chega. É preciso buscar formas de arrecadar recursos das pessoas que têm (dinheiro) para financiar políticas públicas", recomenda Newton.
"Ser solidário parece que tem um prazo de validade. A partir do momento
em que a pandemia se estendeu, de alguma forma, as pessoas
foram ficando mais individualistas, pensando na própria situação”
Gorete Rocha, psicóloga
Saiba como ajudar
Confira algumas das instituições brasilienses que precisam de contribuição:
Casa Akotirene
Nubank
Ag.: 0001 — C/C: 81851963-5
Contato: 9 8377-7384
Casa Azul
casazul.org.br/quero-doar
Contato: 3359-2095
Casa de Ismael
Banco do Brasil
Ag.: 3477-0 — C/C: 45.122-3 — CNPJ: 00.077.255/0001-52
Contato: 3272-4731
Central Única das Favelas (Cufa-DF)
Banco do Brasil
Ag.: 2895-9 — C/C: 40118-5 — CNPJ: 08.466.173/0001-01
Contato: 9 8601-5960
Instituto Doando Vida
Banco do Brasil — Ag.: 1419-2 — C/C: 27.488-7 — CNPJ: 29.527.754/0001-86
Contato: 9 8114-2211
Instituto No Setor
catarse.me/contraataquenosetor
Contato: 9 9976-7393
ONG Projeto Dividir
catarse.me/projetodividir
Contato: 9 8293-3564
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