Obituário de gaveta

Crônica da Cidade

Para facilitar o fechamento da edição de fim de semana e ajudar os colegas de plantão, deixo pronto meu obituário. Caso meu coração não aguente tamanha emoção de ver o Palmeiras campeão da Libertadores (se for para morrer, que seja campeão), hoje, e eu parta para uma melhor (ou pior), saibam que eu parti muito p... da vida. Morrer é uma p... sacanagem.

Amigos, boêmios de Taguatinga e familiares se despedem, neste fim de semana, do jornalista Adson Boaventura, 37 anos, que infartou enquanto assistia à final da Copa Libertadores entre Palmeiras x Santos. Era conhecido também como Adelson, Adenílson e Alisson por quem confundia seu nome ou pelos amigos que adoravam sacaneá-lo.

Baiano de Salvador (fajuto, mas adorava aracajé e simpatizava com o candomblé), deixou a capital baiana, ainda criança, para desbravar terras sergipanas, paulistas, eslavas e candangas. Chegou em Taguatinga em meados de 1990, deixou a cidade por duas vezes, mas não aguentou de saudades e voltou.

Tentou a carreira musical algumas vezes, mas nenhuma banda saiu do papel ou do primeiro ensaio. Conhecedor de temas “peculiares”, sabia o nome da capital do Quirguistão e adorava conversar sobre geopolítica nos botecos, o que causava tédio em algumas pessoas. Sabia como ninguém irritar alguém.

Escreveu um romance que tinha como pano de fundo a guerra da Ex-Iugoslávia. Foi lido (talvez) por amigos e seus pais. Também escrevia, às vezes, sobre crises existenciais e ironias do cotidiano em um blog que nunca teve muita audiência. Nunca plantou uma árvore. Não teve filhos.

Palmeirense (jura?), estava cansado de ouvir que seu time não tinha mundial. Lembrava sempre do Mundial de 1951 e planejava ver, em breve, a final contra o Bayern, no Catar, se a pandemia e o orçamento deixassem (o que, provavelmente, não aconteceria).

Filho único, deixa uma pequena poupança e algumas dívidas aos pais, Hormínio e Maria. À companheira Brenda, os discos de vinil e os livros. Para ela, também deixaria um gato, mas estava com preguiça para instalar tela protetora nas janelas do apartamento, e nunca adotou um bichano. Aos amigos, algumas rodadas de cerveja pagas no bar.

Não, pessoal. Muita gente me mataria se eu morresse agora. Neste domingo, estarei morto apenas de ressaca. Comemorando ou lamentando a final da Libertadores. Vida que segue.