Ter a liberdade de ser quem é, na essência de como se enxerga, não é uma tarefa fácil para quem não se reconhece no corpo em que nasceu. O desconforto, a inquietação, a descoberta e a aceitação são processos que homens e mulheres transexuais passam ao longo da vida. No Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado hoje, o Correio conta a história de pessoas trans, uma comunidade em que a trajetória de vida é marcada por lutas contra o preconceito e pela busca de direitos.
Em 25 de outubro de 2018, Adam Vitor Jesus Ferreira, 24 anos, renasceu com a retificação do primeiro nome. O processo de identificação de gênero começou na adolescência, aos 16 anos. O apoio familiar foi essencial e acabou sendo mais tranquilo, pois a irmã mais velha dele havia, anteriormente, se assumido como mulher trans. “Minha mãe costuma dizer que não perdeu um filho e uma filha, mas, sim, tem dois filhos que se enxergam de forma diferente. O importante é ser uma pessoa de caráter, do bem”, relata.
Em 12 de junho de 2018, o rapaz começou o tratamento hormonal com um endocrinologista. “Foi o melhor dia da minha vida”, conta. No mês seguinte, deu início ao processo de retificação do nome. “Foi como se eu nascesse de novo”, comemora. Para Adam, a maior conquista foi conseguir ter barba e a voz grossa. “Quando você é um homem trans, o tempo todo há uma pressão social para se encaixar em um estereótipo masculino. De empresas que não aceitam o nome social, de atendentes na farmácia que não querem repassar a medicação e de comentários ofensivos e constrangedores”, enumera.
A celebração de 29 de janeiro surgiu em 2004, quando um grupo de ativistas trans participou, no Congresso Nacional, do lançamento da primeira campanha contra a transfobia, promovida pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de ressaltar a importância da diversidade e o respeito ao movimento trans, representado por travestis, transexuais e transgênero. O Dia da Visibilidade Trans passou, então, a representar a luta cotidiana das pessoas trans pela garantia de direitos e pelo reconhecimento da sua identidade.
Militante e personal trainer, Leonardo Luiz da Cruz Lima, 26, defende a importância do acesso aos direitos e comemora as conquistas da população trans, mas ressalta que há um caminho grande pela frente até a igualdade plena. “Precisamos avançar muito, principalmente na capacitação de profissionais dos serviços básicos como a saúde, segurança, educação e empregabilidade. É uma luta diária, mas tivemos avanços, como o Ambulatório Trans e a retificação do nome social menos burocrático”, afirma. “Sou de uma época que para retificar o nome, o processo era judicializado e demorado. Até hoje, tenho o gênero feminino na identidade, porque não consegui trocar isso anteriormente. Atualmente, esse processo está bem mais acessível”, avalia.
A atenção à saúde é um dos pontos mais necessários para o amparo de homens e mulheres trans. No Distrito Federal, existe o Ambulatório Trans que auxilia boa parte dessa demanda. A unidade especializada realizou 1.873 atendimentos no ano passado.
Informação salva vidas
O caminho percorrido por Samanta Mendanha Santos, 28, não foi fácil. Na infância, por volta dos 5 anos, passou por um enorme trauma que reverberou até a adolescência. “Quando eu era pequena, eu passei por terapia de cura gay. Nos anos 1990, ainda era permitido esse tipo de tratamento, depois foi proibido. Mas, durante o pouco tempo que fiz o acompanhamento, fez um estrago enorme”, relata. “O acesso à informação foi um ponto de virada na minha vida. No início dos anos 2000, já tínhamos pessoas falando sobre identidade de gênero e, com a internet e as redes sociais, em 2010, isso me ajudou bastante a me entender e me aceitar”, revela Samanta. “O apoio da minha mãe e de parentes fez toda a diferença. E esse é até um apelo que eu faço, que as pessoas abracem e escutem o que os familiares trans têm a dizer. Porque isso salva vidas”, destaca.
Com o foco no acesso à informação para a população trans, familiares e amigos, a Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus) criou o site Cidadania Trans. O portal reúne dados e serviços básicos especializados para o atendimento de pessoas transexuais e travestis. Nele, é possível saber o passo a passo para a retificação do primeiro nome, como fazer e a quem recorrer. A secretária da pasta, Marcela Passamani, explica que o site foi criado a partir de uma demanda das mulheres trans. “Em uma visita, uma mulher trans me parou pedindo informações sobre quais órgãos ela poderia procurar para a reposição hormonal, e percebi essa carência”, conta Marcela. De acordo com a secretária, este é o primeiro portal de direitos para pessoas trans do Brasil. Nesta semana, em alusão ao Dia da Visibilidade Trans, o Palácio do Buriti também ganhou iluminação especial nas cores da bandeira trans.
Para além do site, a pasta comemora a sanção da lei distrital de autoria do deputado Fábio Felix (PSol) que assegura o direito do nome social nas lápides e nos atestados de óbitos de travestis, mulheres transexuais, homens transexuais e demais pessoas trans. A lei foi sancionada pelo governador Ibaneis Rocha (MDB) na tarde de ontem, com previsão de publicação no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) de hoje. Com a norma, familiares de pessoas que já faleceram podem requerer, a qualquer momento, a inclusão do nome social nas lápides, na certidão de óbito e nos registros dos sistemas de informação dos locais responsáveis pelo sepultamento, cremação e tanatopraxia.
Fica assegurado o respeito à aparência pessoal e às vestimentas que representem a identidade de gênero da pessoa que morreu. O descumprimento da lei implica em multa equivalente ao valor de 10 salários mínimos, para o custeio de políticas públicas de promoção de direitos das pessoas trans.