O diretor-geral do Hospital Sírio-libanês em Brasília e oncologista, Gustavo Fernandes, foi taxativo sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e de um Programa Nacional de Imunização (PNI) consolidado no enfrentamento à covid-19 em todo o Brasil. “O caos que a gente descreve hoje seria amplificado exponencialmente”, declarou ao CB.Saúde — parceria entre o Correio e a TV Brasília — em entrevista à repórter Bruna Lima.
De acordo com ele, sempre há pontos em que se pode melhorar, entretanto, é preciso compreender que o combate à pandemia exige escolhas difíceis e rápidas dos gestores da Saúde. Para ele, o principal entrave brasileiro, neste momento, é a disputa política em torno das negociações sobre a vacinação.
“O problema que a gente tem hoje é com aquisição de vacinas. (...) tem uma hora que a gente precisa se unir. A gente já entendeu que a vacina salva vidas, é o que vai tirar a gente do meio dessa confusão. Então, vamos juntar todo mundo em torno dessa pauta”. Confira alguns trechos da entrevista:
Por que os profissionais de saúde são os primeiros a serem vacinados e não, por exemplo, idosos internados?
Em um cenário em que é preciso fazer escolhas, elas sempre vão doer em uns mais do que em outros. Eu acho que a vacinação dos profissionais de saúde tem alguns benefícios. Primeiro: é que essa é uma força de trabalho muito exposta à covid-19. Temos de agradecer a essas pessoas por estarem brigando há quase um ano contra isso. Uma outra justifica é que quando um profissional de saúde adoece, ele gera dois problemas: a doença dele e a falta de mão de obra no sistema de saúde. Uma terceira é que até que um profissional de saúde seja detectado com a doença, ele ainda pode transmiti-la tanto para outros colegas quanto para pacientes vulnerabilizados no hospital por conta de outras doenças. Eu tenderia a vacinar os profissionais que não tiveram covid, que são 30% ou 40% dos que estão na linha de frente. Existe reinfecção, mas são casos pequenos que tendem a ser menos graves. E junto com eles, eu vacinaria os idosos, principalmente acima de 80, e depois entre 60 e 80 com comorbidades, mas com o mesmo critério: aqueles que não tiveram covid.
Como o Brasil está lidando com a questão da gestão da saúde pública e privada no âmbito da pandemia?
Espaço para melhorar sempre tem. Não consigo concordar com tudo que o Ministério da Saúde faz e fez. Inclusive, critico ações do ministério desde que eu tenho algum tipo de noção. Mas, também é bastante interessante reconhecer que a existência do SUS dentro de um cenário como esse é o que viabiliza o país a estar da forma que ele está hoje. Se não tivesse um sistema de saúde que oferecesse condições para as pessoas serem atendidas, um sistema de vacinação, o caos que a gente descreve hoje seria amplificado logaritmicamente. É bastante interessante que haja espaço para melhorar o SUS. Nós temos problemas de gestão, de logística, de desigualdade, de parametrização, mas temos o luxo de ter no Brasil um sistema de saúde que se propõe a atender todo mundo, inclusive, os não brasileiros. Potencial para melhorar, tem.
É preciso, daqui para frente, engatar ainda mais o nosso programa nacional de imunização a partir do momento que chegarem novas doses de vacina contra a covid?
O Brasil possui postos de saúde instituídos em todos os municípios. O brasileiro está acostumado a se imunizar no posto, os técnicos de saúde são treinados para isso. Temos um programa estabelecido há décadas, e o problema que a gente tem, hoje, é com a aquisição de vacina. Hoje, tem uma brigalhada política horrorosa, chega uma hora que precisamos nos unir e chegar e dizer: já entendemos, nós já temos a vacina, a vacina salva vidas, e é o que vai tirar a gente dessa confusão. Vamos juntar todo mundo em torno dessa pauta para poder comprar vacina.
Havia uma expectativa em relação à pandemia de que a gente teria uma nova crise na saúde, provocada por pessoas que deixaram de fazer procedimentos médicos de rotina ou que interromperam tratamentos. Isso está mesmo acontecendo?
Essa é uma previsão que se confirmou. Olhando na clínica, no consultório, vemos o surgimento de casos de câncer, por exemplo, em estágio muito mais avançado do que a gente costumava ver, porque as pessoas não estão fazendo seus exames de check-ups. Elas estão com medo de ir ao hospital, de buscar assistência médica. Aí, vem um paciente que perdeu 10kg e que está com dificuldade para se alimentar, mas que não consegue vencer a barreira da porta de casa para poder ir buscar um serviço. Então, as mortes em casa também aumentaram ao longo do mundo inteiro, quer dizer, morte cardiológica, morte respiratória... Isso talvez machuque um pouco o impacto da redução do número de mortes por câncer que vem ocorrendo proporcionalmente em todo o mundo.
Foi publicado, nesta semana, um estudo de caso britânico que relata a história de um paciente com linfoma avançado que contraiu a covid-19 e teve remissão desse linfoma. Como isso é possível?
Essa história é repetitiva na história da medicina. Isso é possível e é real, e, provavelmente, se deve a uma provocação do sistema imune que o vírus faz. Um cirurgião americano chamado William Coley, que viveu até a década de 1930, mais ou menos, percebeu pela primeira vez que um doente tinha um sarcoma no pescoço e pegou uma infecção no braço. Depois dessa infecção, o sarcoma diminuiu, e nós estamos aqui quase cem anos depois falando disso. A infecção de pele, assim como a covid, não trata o tumor, mas, a partir dessa observação, se desenvolveu a imunoterapia. Com uma pesquisa nesse campo, pesquisadores ganharam o Nobel de medicina em 2018. Assim, o princípio de provocar o sistema imune vale muito, mas infectar as pessoas com qualquer coisa já foi tentado no passado e deu muito errado, não é recomendado.
* Estagiária sob a supervisão de Adson Boaventura