Passou quase em brancas nuvens o último livro de Nicolas Behr, Razília (é assim mesmo, revisão), lançado na passagem do aniversário dos 60 anos de Brasília. Esse é um prejuízo adicional não contabilizado da pandemia. E é uma pena que tenha ocorrido isso, pois trata-se de um dos melhores livros do Behr, talvez o mais representativo poeta de Brasília. Por isso, embora já tenha comentado a obra, volto a ela com um novo olhar.
E digo que Behr é representativo porque ele se engalfinhou com a maquete do Plano Piloto de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, em um caso de amor conflagrado, que só não acabou na delegacia do Lago Norte, porque se resolveu em poesia, como mostra o poema Palácio da Justiça: “Bicho, este palácio é a maior cascata”.
De poeminha em poeminha despretensioso, Behr compôs um mosaico tenso, dramático, irônico e contraditório da cidade. A ponto de nos levar à indagação: afinal, ele ama ou odeia a cidade? E só a pergunta é um sinal de saúde porque mostra que, se há amor, é um amor crítico.
Behr é um menino nato, não importa que ele já tenha ultrapassado a curva dos 60. Na década de 1980, quando estreou na poesia marginal, com livrinhos mimeografados, parecia um surfista da piscina de ondas. Hoje, a sua estampa é de um venerável cientista da Academia de Ciência Brasiliana.
Mas é só mirar nos seus olhos para vislumbrar a luz do menino matogrossense travesso e matreiro. É com esse olhar que ele contempla Brasília. Sinto-me à vontade para elogiar porque, na década de 1980, questionei bastante a poesia marginal. Agradava-me muito a abordagem brutalista, a ênfase na vida como ela é, a linguagem crua, mas eu discordava do culto à ignorância.
Da precariedade, Behr fez uma força e se tornou um poeta indissociável de Brasília. Em Razília, assim mesmo, sem o B, para expressar a incompletude da cidade e da poesia, Behr toma emprestada a máquina Polaroid de Oswald de Andrade e registra retratos-relâmpago de figuras célebres ou anônimas da cidade.
No poema dedicado ao doutor Stênio Bastos, diretor da Novacap, responsável pelo plantio de árvores espalhadas pela cidade, Behr sintetiza o personagem e o cenário em que vive: “Se você respira agradeça às árvores se você respira e ama as árvores de brasília agradeça ao stênio.”
Todavia, o interessante é que Behr inaugura uma nova faceta em sua produção. Ele registra flashes poéticos não apenas de cenas cotidianas, mas, também, de estados da alma, como ocorre no poema dedicado a Cássia Eller: “diamante bruto/quanto menos lapidar/mais brilha”.
Brasília foi concebida por Lucio Costa a partir do gesto de quem toma posse do território, fincando uma cruz na terra. Todavia, o desenho do Plano Piloto ficou parecendo um avião. Pediram esclarecimento ao doutor Lucio e, bem-humorado, ele disse que era uma borboleta. É com essa história que Behr brinca no poema dedicado a Lucio Costa. Behr, que tanto criticou os criadores de Brasília, se rende ao talento do urbanista e faz a epifania: “a razão pensa/e surge o gênio/de dentro da borboleta”.
Em poucos traços, o poeta capta o sincretismo de Tia Neiva: “o branco com seus orixás/índio pregado na cruz/negro cultuando seta branca/ tia neiva, não satisfeita,/misturou ainda mais/ religião vem de religar.”
Razília representa um salto de qualidade na poesia de Behr. O humor, que se diluia na piada, se lapidou em iluminação lírica. Como é o caso do lindo poema dedicado ao nosso poeta TT Catalão: “teu velório foi uma festa/não vou dar detalhes/porque eu sei que você também estava lá”.