Crônica da Cidade

A poucos quilômetros desta capital, ali no interior de Goiás, viveu uma mulher que desafiou o próprio tempo. Ana Lins dos Guimarães Peixoto nasceu Cora Coralina aos 76 anos, quando começou a publicar os textos que escrevia. O motivo que me leva a escrever sobre Cora, hoje, é triste, porém nobre, como muitos dos capítulos da vida da poeta.
É que a morte de mais uma mulher vítima do machismo, da intolerância e da violência de gênero me fez pensar o quanto somos forçadas a encontrar caminhos para a sobrevivência em uma sociedade marcada por um preconceito visceral, incrustado em olhares, palavras e gestos.
Cora, expoente da literatura ainda em vida, foi convidada a participar da Semana de Arte de Moderna de 1922, mas proibida de participar pelo marido. À sombra da beleza das irmãs, precisou cultivar a resiliência para enfrentar os mais cruéis comentários que uma criança pode escutar.
“Eu era triste, nervosa e feia. Amarela, de rosto empalamado. De pernas moles, caindo à toa. Os que assim me viam diziam: ‘Essa menina é o retrato vivo do velho pai doente’”, escreveu em Minha infância (freudiana).
Mais de um século depois, ofensas e desafios cotidianos para ter o direito de sair de casa e de trabalhar ainda são fantasmas que mulheres ao redor do mundo e aqui, nesta Brasília, capital modernista, forjada no suor também de candangas, precisam encarar.
A violência permeia os comentários maldosos sobre a aparência, o menosprezo da capacidade laboral e destrói a essência do que nos torna nós mesmas: sentimentos, paixão, afeto, poesia.
Compartilho os versos de Ofertas de Aninha (Aos moços), em que uma profética Cora Coralina fala, inclusive, de milagres da ciência e de uma profilaxia para erros e violências do presente.
“Eu sou aquela mulher / a quem o tempo / muito ensinou. / Ensinou a amar a vida. / Não desistir da luta. / Recomeçar na derrota. / Renunciar a palavras e pensamentos negativos. / Acreditar nos valores humanos. / Ser otimista. / Creio numa força imanente / que vai ligando a família humana / numa corrente luminosa / de fraternidade universal. / Creio na solidariedade humana. / Creio na superação dos erros / e angústias do presente. / Acredito nos moços. / Exalto sua confiança, / generosidade e idealismo. / Creio nos milagres da ciência / e na descoberta de uma profilaxia futura / dos erros e violências / do presente. / Aprendi que mais vale lutar / do que recolher dinheiro fácil. / Antes acreditar do que duvidar.”