A chegada do segundo filho da professora Taicy Ávila, 44 anos, ocorreu quando a criança já tinha um ano e meio de vida. “Ligaram da Vara avisando que havia uma criança no perfil, meu coração saltou pela boca de expectativa e de felicidade. Foi a mesma sensação de quando engravidei do filho mais velho.” Era a resposta que tanto esperava depois de ingressar com o processo de adoção na Vara da Infância e da Juventude (VIJ). Dois dias depois, veio o frio na barriga e a alegria, que ela sentiu ao encontrar Samuel no abrigo em que ele vivia, em Taguatinga.
“Estávamos na posição 455 da fila. Assim que o Samuel foi habilitado, fomos imediatamente chamados. Éramos a única família do DF que aceitava crianças com deficiência”, conta Taicy. Samuel foi diagnosticado com paralisia cerebral. Hoje, todo o tratamento é feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), além das atividades terapêuticas realizadas na rede conveniada da Secretaria de Educação.
“Você pensa que vai precisar de rios de dinheiro para cuidar da criança (com deficiência). O que precisaé de informação”, diz. Num processo que se assemelha ao do nascimento de um bebê, a professora sente que deu à luz a nova família após quase um mês, tempo decorrido até o encerramento do processo de convivência e efetivação da adoção.
Histórias reunidas
O relato de Taicy é uma das 39 histórias que compõem o livro Adoção tardia. Relatos de famílias nascidas de uma escolha, que será lançado na próxima sexta-feira. A publicação, produzida pelo Grupo Aconchego, reúne as experiências de famílias que acolheram crianças, sobretudo as que já não eram mais bebês. “Vai ser um lançamento inusitado, sem autógrafos”, explica uma das organizadoras, Fátima Moraes.
A transmissão do evento será por videoconferência. Com a emergência da pandemia do novo coronavírus, todo o processo de edição, que começou em 2018, foi finalizado virtualmente, em trocas de mensagens pelo WhatsApp.
A ideia surgiu em um dos encontros do grupo de pais e pretendentes à adoção promovidos pela ONG, em que trocam experiências sobre a adoção. Sentados em roda, os cerca de 30 participantes compartilham suas angústias dentro de uma sala de aula no colégio Leonardo da Vinci, na Asa Sul, enquanto os filhos brincam do lado de fora, e são observados por uma psicóloga. “Depois ela se encontra com a equipe que estava com os pais e eles têm um feedback para falar sobre como estão as crianças”, conta Fátima.
Segundo ela, a configuração familiar do grupo é diversa. “Tem perfil de pais mais velhos, mães solteiras, casais homossexuais, é bem aberto”, relata. Nas reuniões, eles comentam sobre problemas com mentiras, defasagem escolar, a construção dos vínculos e a descoberta de semelhanças com a família, por exemplo.
Além de voluntária, Fátima é uma das autoras. Mãe de seis filhos, três deles adotivos, ela afirma que educar seres humanos é difícil, mas que a experiência trocada entre os pais ajuda no processo. A própria Fátima começou a frequentar as reuniões mensais aos sábados em busca de esclarecimentos e hoje é uma das conselheiras. “Se tivesse tido o apoio de um grupo antes, eu teria sido uma mãe melhor para os meus três filhos mais velhos”, pondera.
Fátima transformou em verso a história com os filhos. “Eu escrevi um cordel”, destaca. Os três vieram de um abrigo em Luziânia (GO), no Entorno do Distrito Federal. A primeira a chegar foi Vitória, aos 6 anos. À época, Fátima já tinha 50 anos e a menina se ligou à filha caçula consanguínea dela, Bianca. “Fiquei com um pouquinho de ciúme, achava que ela queria ser filha da Bianca, e não minha filha, mas ela sempre me ajudava”, conta.
A menina chegou a ser devolvida pela família anterior antes de ser adotada por Fátima. “A psicóloga disse que ela era muito agressiva. A gente sabe que a criança nos testa muito forte, como se estivesse se autossabotando, mas, quando o amor vem, tudo é amenizado, a gente percebe como característica da pessoa.”
Após essa adoção, ela continuou frequentando o abrigo. “Toda vez que a gente ia lá, abraçava o Alisson, pedia que achassem uma mãe para ele, sem saber que era eu”, diz. Junto, veio a irmã mais velha, Meire. “A gente foi lá e fez o convite para eles: vocês querem vir para nossa família?”, lembra. A primeira tiragem do livro com esses e outros relatos terá mil cópias.
Mãe em dose tripla
A psicóloga Denise Mazzuchelli, 37, encarou o desafio da adoção tardia para realizar o sonho da maternidade. “Eu e meu marido falávamos de adoção desde quando éramos namorados. Eu pensava que, depois de ter filhos biológicos, teria por adoção”, relembra. “Falava para o meu marido que queria seis filhos. Ele dizia que queria zero, então, fez uma média: teríamos três.”
Depois de oito anos de relacionamento, a vontade de adotar cresceu. “Nosso primeiro filho já estava nascido, só precisava achar.” Foi então que entraram para o cadastro e optaram por uma criança de até 8 anos. Ela diz que a experiência da maternidade veio como um tsunami.
“Quando fomos contatados, era uma criança que tinha acabado de fazer 8 anos e essa criança tinha um irmãozinho. A gente só estava disponível para uma criança, mas acabou que quisemos conhecer. Assim, adotamos Yasmin e João”, relata. Todo o processo, desde o cadastro, até a adoção, durou cerca de 10 meses. O tempo de espera pela criança pode levar anos. “Como o perfil era amplo, foi pouco tempo de espera”, observa Denise.
Mas cuidar de duas crianças foi desafiador. “Foi tudo muito rápido, por mais que a gente estivesse se preparado”, frisou. “Tudo muda quando um filho chega, ainda mais quando chegam falando, andando, com histórias e bagagem”, diz. Ela afirma que um filho por adoção tem “idade fatorial”: “No mesmo dia, faz birra, ou não quer dormir sozinha e logo depois te dá uma lição de vida”. Denise ressalta que teve o apoio de terapeutas nessa adaptação. “Mas a gente foi como todo pai e toda mãe: errando e aprendendo”.
Era preciso estabelecer vínculos. Ela conta que foi pela via do cuidado que conseguiu criar uma relação de afeto com as crianças. “Fui criando rotinas propositalmente. Nunca troquei fralda da minha filha mais velha, nunca dei banho e ela já começava a dar sinais de adolescência. Então, eu tomava banho com ela, passava creme nos cabelos, foi um ritual para a gente se aproximar.” Já com o filho menor, estabeleceu uma rotina de leitura de histórias e colocar para dormir.
Em uma dessas ocasiões, João buscou o peito de Denise. “Ele mamou durante dois meses, até que comecei a sentir contrações.” Desconfiada, Denise foi ao médico. O diagnóstico? “Descobri que estava grávida, mesmo usando anticoncepcionais. Em 10 meses, tive três filhos de idades diferentes.”
“Morena não quis ficar sozinha no céu”, diziam os irmãos. “Óbvio que rolou ciúmes, mas coisa normal”, lembra Denise. Hoje, os pequenos estão crescidos e têm 14, 7 e 3 anos. “Às vezes, olham a família e dizem: ‘Nossa, como você demorou entre um e outro.” Nessas situações, ela dá um sorriso de canto: “Você não faz ideia de que fui atingida por uma onda de filhos”. Agora, garante que se sente realizada. “Na adoção tardia, o ritmo da vinculação é diferente. Mas olho para eles e a gente se vê uns nos outros.”
Perfil da adoção no DF
As adoções são consideradas tardias quando se tratam de crianças com mais 8 anos, idade em que há uma redução de famílias interessadas. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o DF tem 100 crianças disponíveis para adoção. A maior parte delas (23%) são maiores de 15 anos. No entanto, apenas um dos 410 pretendentes à adoção indicou que aceita adolescentes com este perfil etário.
Outras 28% têm entre 9 e 15 anos. Na faixa etária de 3 a 9 anos, estão 32% das crianças e 17% têm até 3 anos. Entre as 100, 63 não têm irmãos. Além disso, 44 são meninas e 56, meninos. Apenas 3% têm alguma deficiência.
As características dos pretendentes à adoção, que somam 410 pessoas, é diversa. Deles, 14% afirmaram que aceitam crianças até 8 anos, enquanto 15% marcaram que pretendem adotar crianças de até 2 anos, e outros 30% querem filhos até 4 anos. Os que desejam acolher crianças até 6 anos são 31%. Apenas uma pessoa indicou que aceita jovens com mais de 16 anos.
Para saber mais
Como funciona o processo
Uma das iniciativas para reduzir a fila dos que esperam por uma nova família é o projeto Em busca de um lar, da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal (VIJ-DF). Os servidores entram em contato com as famílias cadastradas para viabilizar a adoção de jovens cujo perfil é, em geral, preterido. Para adotar, é preciso ser maior de 18 anos e morar no DF, e comprovar que tem condições de oferecer um ambiente familiar saudável para o desenvolvimento da criança.
Antes de ter o filho nos braços, a adoção requer alguns passos burocráticos. O primeiro deles é procurar a VIJ para entregar a documentação necessária ao cadastro no sistema de adoções. Em seguida, o pretendente passa por entrevistas com psicólogos do juizado, e ainda pode haver a visita de uma assistente social.
Todas as informações recolhidas por esses profissionais são submetidas a um juiz que vai decidir pela aprovação ou reprovação do registro do pretendente. Uma vez que o cadastro seja aprovado, o pretendente será homologado como apto à adoção, entra na fila e espera o contato da VIJ quando uma criança no perfil indicado no cadastro estiver disponível.
Serviço
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