Lições do budismo

2021: 'É preciso agradecer pelo que temos', sugere monja Aida Kakuzen

A religiosa fala sobre como precisamos viver o presente e aprender com o passado para construir um futuro melhor. Ela pondera que a pandemia deixará marcas na sociedade que nos acompanharão por anos

Grandes desastres e acidentes, a escalada de mortes causadas pela pandemia do coronavírus, o aumento do desemprego, da desigualdade e da pobreza em todo o país marcaram 2020. Para a monja Aida Kakuzen essas são cicatrizes que nos acompanharão durante muitas gerações e que moldarão, de uma forma ou de outra, a sociedade que construímos.

Kakuzen é sensei (professora) da comunidade Zen Brasília e foi ordenada há oito anos pela monja Coen Roshi, a mais conhecida representante da tradição Soto Zen no Brasil. Essa escola é a linhagem japonesa dos discípulos de Shakyamuni Buda e tem como principal pilar a prática da meditação silenciosa, sem entoação de cantos ou músicas, apenas o praticante em frente a uma parede branca, como forma de autoconhecimento e princípio da transformação do mundo.

A principal busca, segundo a monja, é o entendimento de que todos fazemos parte de um coletivo e que precisamos cuidar uns dos outros, começando por nós mesmos, não só em anos de dificuldade como 2020, mas em tempos mais calmos, quando cada um de nós pode se sentir tentado a se acomodar.

“Acho que estamos muito carregados de frases feitas, mas o mais simples a gente não consegue fazer, acordar de manhã, agradecer o que tem, contentar-se com o que tem, estar aberto a coisas novas, com muita atenção, com muito zelo nas suas relações. Acreditar que, a todo o tempo, você está se transformando, se renovando. Essa é a mensagem que a vida traz para nós”, detalha Aida Kakuzen.

A monja explica que essa consciência se amplia e alcança os demais. “O Zen é o Zazen (meditação sentada), mas ele tem troca com indígenas, com quilombolas, com quem é esquecido, abandonado. Eu, como humana, não posso compactuar com isso (a marginalização de pessoas e grupos) e eu, como monja, o que eu posso fazer para transformar essa realidade”, indaga a religiosa.

Isolamentos

Diante desses questionamentos, surge a palavra que talvez resuma o ano que terminou: isolamento. Entretanto, para Kakuzen, a pior forma de ficarmos distantes uns dos outros não ocorreu durante a pandemia, vem de antes dela. “Estávamos em um isolamento medroso e, esse isolamento físico, que veio para você se cuidar, parece que caiu como uma luva para certas pessoas”, pondera.

Segundo a monja, a pandemia e as dificuldades econômicas e sanitárias acabaram por jogar luz sobre antigos problemas. “Vejam o que está acontecendo com relação aos negros, aos indígenas, nossas duas populações originais, são as mais vilipendiadas. A gente se isolou em todos os sentidos e foi uma barreira social, política e ideológica para separar de vez e isso revela em nós esse preconceito”, avalia.

Para além dos marcadores sociais mais claros, o descaso com o outro se refletia no dia a dia quando levávamos vidas automatizadas, de acordo com Kakuzen. “Percebo que as pessoas estão andando e falando coisas, repetindo como um zumbi. Vejo que estão muito fora da realidade, totalmente inconscientes. É muito triste essa situação que estamos chegando”, lamenta a religiosa.

Na análise de Aida Kakuzen, falhamos no controle da covid-19. “Tinha que ter uma campanha para as pessoas ficarem em casa, para esperarem as vacinas. É um absurdo a gente ter perdido tanta gente assim, tantos”, diz. Para a monja, faltaram políticas públicas e campanhas de conscientização sobre a importância de proteger o outro, assim como a si mesmo. “É muito triste essa situação a que estamos chegando. Nem uma pandemia, nem isso nos fará mudar? Só temos essa chance”, faz um apelo.

Como mudar?

A saída, de acordo com a mestra, é simples: redesenhe pequenos hábitos. “Quanto desperdício a gente faz com comida? São pequenas ações. A gente não pode ficar fazendo grandes planos, a gente ainda não sabe se cuidar direito, é um trabalho de formiguinha”, descreve.

Para este ano de 2021, a monja recita um trecho do poema Receita de Ano Novo, de Carlos Drummond de Andrade: “É dentro de você que o ano-novo cochila e espera desde sempre”. Na linguagem budista, isso é dito de forma mais direta: “O ano-novo é só quando passa de 31 para 1º? Não. A renovação tem que ser feita de instante a instante, como a nossa renovação celular. Não existe 2021, existe 2020, carregado de tristeza, de muita ignorância, essa mudança, precisa ser feita a todo instante, a toda hora, como você cuida de você, das suas coisas, como desapega de roupas, desapega de bens materiais, e quanto menos melhor. A gente precisa ter essa inteireza, fazer esse religar”, ressalta.

Aida Kakuzen salienta que o acolhimento do ser humano dentro das diferentes culturas e a busca por se tornar melhor a cada dia é o que trará conforto a todos, enquanto grupo e a cada um, individualmente. Assim, a lição para criar um ano novo todos os dias é: “Acorde e observe-se em silêncio, sentindo cada instante da vida como algo precioso, lavando a louça e arrumando a casa como um ser humano inteiro, cuidando dos filhos e trabalhando concentrado, unicamente, naquilo que faz aquele instante, porque cada minuto é uma chance única e irrepetível”.