Professora da Universidade de Brasília (UnB), a infectologista Valéria Paes acredita que o sucesso dos setores da saúde e da economia depende um do outro, principalmente neste momento de pandemia. Ontem, em entrevista ao CB.Poder — parceria do Correio com a TV Brasília —, a médica defendeu que é possível manter casos da covid-19 sob controle e o funcionamento de comércios e serviços. No entanto, para a medida ser efetiva, é necessário ter “adesão da população” às recomendações das autoridades sanitárias.
A professora, que também é coordenadora de Infecção Hospitalar do Sírio-Libanês em Brasília, destacou que os protocolos de segurança — como uso de máscaras, álcool em gel e manutenção do distanciamento social — serão essenciais mesmo depois da chegada da vacina e que devem ser seguidos, inclusive, por quem se infectou com o novo coronavírus. Além disso, Valéria Paes demostrou preocupação com a quantidade de fake news disseminadas em relação à pandemia, com as aglomerações e com a falta de planejamento para a aquisição da vacina.
Qual é a importância da vacina para combater a covid-19?
As vacinas revolucionaram a saúde da humanidade. (Em relação a) uma série de doenças, conseguimos reduzir significativamente o número de casos, inclusive erradicá-las por meio das vacinas. Um exemplo seria a varíola, uma doença de transmissão respiratória que, nos séculos 17 e 18, levava a óbito cerca de 30% das crianças daquela época. Por meio da vacinação, conseguimos nos proteger e, hoje, (ela) é uma doença erradicada no mundo desde a década de 1980. Então, esse (a vacina) é um recurso valiosíssimo. Infelizmente, vínhamos observando, nos últimos anos, uma ascensão do movimento antivacinas. (Mas) costumamos dizer que as vacinas são vítimas do próprio sucesso, porque as pessoas deixam de observar aquelas doenças e não se sentem em risco. Só que isso (a diminuição dos casos) não é uma verdade. A gente ainda oferece vacinas que são contra doenças de importância mundial. E a covid-19 reforçou que o trânsito entre pessoas é muito rápido e muito fácil no mundo inteiro. Por isso, precisamos nos apegar a esse recurso.
Inclusive, tivemos casos de sarampo recentemente, com pessoas morrendo por causa de uma doença que estava erradicada no Brasil...
Sim. Dois exemplos muito recentes são a febre amarela e o sarampo. São duas doenças para as quais tínhamos uma vacina altamente eficaz e, mesmo assim, tivemos dois grandes surtos no país, que ocorreram apenas por não termos uma cobertura vacinal adequada.
O Brasil tem um plano nacional de imunização que é reconhecido. Como chegamos ao ponto de as pessoas começarem a questionar e até terem medo das vacinas, que passam por processos muito extensos de testagem da eficácia?
Esta é a primeira pandemia dos tempos modernos — em que temos redes sociais e uma agilidade de comunicação muito forte. É tudo muito rápido. A gente não conseguiu — na mesma velocidade das fake news — disseminar informações verdadeiras e fortes. Não conseguimos comunicar da forma correta para dar a segurança que todo mundo precisava. Infelizmente, há grupos que desejam ansiosamente soluções práticas e milagrosas que, infelizmente, não existem. Essas fake news são questões que podemos discutir até com psicólogos e cientistas sociais. Eles poderiam nos explicar muito sobre como é mais fácil acreditar em uma informação que quero muito ouvir e que seja dessa forma (falsa), do que em uma informação real, como “Não temos essa informação ainda. Estamos desenvolvendo pesquisas sobre assunto”. Eu vejo como um receio, que é natural diante do novo, do desconhecido.
Alguns países conseguiram chegar ao fim de 2020 vacinando a população. O que falta para o Brasil começar isso a partir do ano que vem ou o que faltou para que o imunizante chegasse até nós neste ano?
Não consigo pensar em outra coisa que não seja planejamento. Os países que estão vacinando se planejaram muito antecipadamente. Lá no começo, quando ainda estávamos falando do álcool (para higienização), da máscara, do distanciamento e do lockdown, eles, além disso, estavam procurando e viabilizando vacinas. Então, “planejamento” seria a palavra-chave.
E o que podemos esperar a partir do momento em que as vacinas chegarem? Significa que a pandemia vai terminar, que os casos serão reduzidos?
Esperamos um alívio. Estamos falando de proteção. Às pessoas dos grupos de risco, aos idosos, aos imunossuprimidos, às pessoas que têm outros tipos de comorbidades, como diabetes, asma, doenças reumatológicas, câncer. Esperamos esse alívio, mas precisamos lembrar que ainda temos muitas questões a serem respondidas. Não sabemos, por exemplo, quanto tempo vai durar a imunidade pela vacina. Ainda não sabemos nem quanto tempo dura a imunidade da doença. Não sabemos com que frequência será necessário aplicar a dose. Vamos ter a oportunidade de observar o que acontecer nos países que estão vacinando e aprender com eles. Porém, teremos de continuar com as medidas de proteção individual. Não podemos esquecer a lição aprendida. Se tivermos adesão a essas medidas, conseguiremos retornar ao normal com mais rapidez.
Após tantas recomendações de saúde, como a senhora avalia as notícias e os vídeos de aglomerações ou festas em um momento como este?
É desalentador. É muito triste, porque quem está trabalhando em hospital, mesmo que não seja na linha de frente, sabe que temos muitos doentes para tratar. É como se fosse um descaso, como se essas pessoas (que não respeitam as recomendações) não se importassem com o próximo. Se eu adoeço, tenho a probabilidade de transmitir para alguém que está perto. Quando a pessoa apresenta sintomas (da covid-19), ela está transmitindo (o vírus) desde as 48h anteriores. Então, quando vemos essas imagens de aglomerações e festas clandestinas, é um desalento para nós, da saúde, que estamos cuidando dos doentes. É muito triste pensar que é uma doença prevenível, mas as pessoas não estão se prevenindo. Imagina se pensássemos assim para todas as outras doenças transmissíveis. Teríamos muitas pessoas doentes.
Sobre o trabalho feito no DF para acompanhar os casos da covid-19, falou-se bastante de monitoramento ativo, vigilância epidemiológica, colocar equipes da saúde para visitar as pessoas em casa. Essa é a melhor saída? O que deve ser feito?
Para conter a pandemia, precisaríamos identificar muito rápido todas as pessoas doentes e que essas pessoas tivessem um acesso muito rápido e fácil ao exame do RT-PCR (que coleta amostra das vias aéreas). E, a partir da identificação, fazer um rastreio de todas as pessoas próximas que estariam sob risco, para oferecer o exame-diagnóstico e, também, colocá-las em isolamento. Para ser mais efetivo no controle da pandemia, deveria se investir nisso. Seria maravilhoso se a atenção básica pudesse fazer isso. E de forma mais intensiva. Também poderíamos usar outros recursos tecnológicos para fazer o rastreio, gerenciar e comunicar as informações de forma muito rápida.
O que a pandemia revelou sobre a saúde pública do país?
Revelou que ela é ainda mais fundamental. Muito do que o sistema de saúde fez no país foi pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Diagnósticos e monitoramento de sequenciamento do (material genético do) vírus foram realizados por grupos de pesquisa, muitos vinculados a universidades, além do próprio atendimento (à população). Tudo isso ocorreu no SUS. E as vacinas, certamente, virão pelo Sistema Único de Saúde. Então, com certeza, a pandemia reforçou a importância desse sistema.
O que se sabe sobre a reinfecção e as variações do novo coronavírus encontradas em outros países? Uma coisa tem relação com a outra?
Os vírus têm uma habilidade para adquirir mutações. Isso ocorre com outros tipos de vírus também. O vírus Influenza, por exemplo. Um dos motivos de precisarmos fazer uma vacinação anual é que ele sofre mutação e, todo ano, precisamos dar uma vacina mais específica contra aquele vírus que está circulando. Essas mutações podem ocorrer com o novo coronavírus. Ainda estamos estudando qual a repercussão delas. Vamos ter de acompanhar o aprofundamento dos estudos. Não sabemos sobre a imunidade ou por quanto tempo ela ocorre após a infecção pela covid-19. Sabemos que, em curto prazo, é raríssimo ter uma nova contaminação. Com três meses (de contágio), é muito improvável (ter a doença novamente). Mas, a partir dos três meses, é que foram descritos esses casos de a pessoa ter uma nova infecção.
Depois que os casos começaram a cair, os comércios e serviços reabriram. Quais são os riscos disso? É possível, no DF, manter os casos sob controle e os serviços abertos?
Isso vai depender da adesão da população às regras de higienização das mãos, do uso de máscara, do distanciamento e da não exposição de pessoas com sintomas respiratórios. (Essas) são medidas efetivas. Acredito que saúde e economia andam juntas. Para ter sucesso em uma, preciso ter sucesso na outra. Quanto mais adesão tivermos das pessoas, dos profissionais, empregadores e políticos, mais rápido vamos resolver essa crise e poder deixar tudo aberto com segurança. Claro que com um monitoramento epidemiológico muito bom, agilidade na informação e na tomada de decisão. Isso geraria mais segurança para todos que precisam trabalhar.
Apesar da quantidade de informações verdadeiras, existe um problema relacionado ao negacionismo da pandemia. Como isso tem afetado a saúde pública?
Tem afetado muito. As pessoas passam a acreditar nas correntes de informação, e isso favorece a transmissão da doença. Se tivéssemos orientação e pensamentos únicos, nossa probabilidade de sucesso (no combate à covid-19) seria maior. Precisamos conversar com essas pessoas e ver o que está faltando. Mas é complicado, pois são tantas fake news. A pessoa vê aquilo e acredita. E, se não houver alguém para dizer que aquilo não é verdade, essas fake news acabam se disseminando e vão atrasar a solução para a crise.