“Hoje em dia, acordo às 5h, vou para a janela e fico lá, agradecendo pela vida, pensando no quanto estou feliz.” O relato de Lilyan Andrade, 57 anos, evidencia o olhar de alguém que chegou a acreditar que não poderia comemorar o Natal em 2020 — assim como as mais de 4 mil pessoas que morreram vítimas da covid-19 no Distrito Federal. A advogada sobreviveu e é uma das 235 mil pessoas que, hoje, estão recuperadas da doença no DF. O número é positivo, mas traz cicatrizes.
Lilyan passou 13 dias internada, com 75% do pulmão comprometido. A falta de ar exigia muita força de vontade para continuar. Durante esse tempo, ela mudou a visão sobre a gravidade da doença, refletiu sobre saúde, a fragilidade da vida, sentiu solidão e, enfim, respirou aliviada após a alta médica, recebida no domingo.
A advogada teve os primeiros sintomas da covid-19 no fim de novembro, mas achava que a tosse apresentada tivesse a ver com a mudança de casa que fez à época. “Sempre fui muito ativa, uma pessoa totalmente saudável, que nunca gripava. Eu fazia parte do grupo de pessoas que menosprezava a doença, que achava que nunca pegaria. Minha família toda teve, e eu, não. Até que comecei a sentir falta de ar”, recorda-se.
Sem conseguir fazer atividades simples e se esforçando até para levantar da cama, Lilyan precisou ir ao hospital, onde acabou internada. “Dali em diante, o quadro foi só piorando. Foram sete dias fazendo exames direto, mas sem melhora nenhuma”, conta. Naquele período, surgiram sentimentos comuns a quem enfrentou a covid-19 dentro de uma unidade de saúde. “Veio uma angústia, principalmente porque estava sozinha. A solidão (por causa da infecção) do novo coronavírus é muito cruel. Faz parte do protocolo, esse isolamento, mas não é nada fácil”, desabafa Lilyan.
Sem conseguir comer direito e com muita falta de ar, ela recorreu à religiosidade para pedir paz. “Eu não conseguia mais. Pedi para Deus me levar, porque vivia sem conseguir respirar, como se alguém estivesse colocando um saco plástico em minha cabeça. Até que conversei com Deus e ouvi que ninguém colocaria um ponto final onde ele colocou uma vírgula. Eu não estava sozinha”, comenta a advogada.
De pouco em pouco, Lilyan se recuperou, com ajuda da equipe do hospital e com a força passada pela família, que enviava vídeos e fazia ligações. No primeiro dia da semana de Natal, veio a notícia da alta. “Foi um milagre. Ninguém passa por isso tudo e sai a mesma pessoa. Eu estava clamando por um pouco de ar enquanto tinha gente destruindo a própria saúde, em bares, festas. Essas coisas me fizeram perceber o quanto a vida é preciosa. Vou continuar me recuperando em casa e, depois, quero fazer trabalhos sociais com crianças em vulnerabilidade em todo Natal”, planeja.
Vitalidade na adversidade
Ao longo de toda a pandemia, especialistas ressaltam que o fator da idade é um possível agravante para a covid-19. Mas Derblay Galvão contrariou as estatísticas, aos 92 anos. O morador da Asa Sul carrega uma história de grandes trabalhos na área pedagógica da capital federal, com passagens pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), onde chegou a ser diretor, e pela Subsecretaria de Desenvolvimento das Instituições de Ensino Superior, da qual foi subsecretário.
Apesar de lidar com a infecção pelo novo coronavírus na idade que tem, Derblay não se diz cansado. Em julho, ele chegou a ser internado na unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Santa Lúcia. “Foi um choque muito grande, porque eu saía pouco de casa, só ia ao mercado e à farmácia. Sempre tive uma vida muito cuidadosa. Foi até uma surpresa me contaminar. Depois, levaram-me para a UTI, mas fiquei tranquilo, (isso) não me amoleceu em nada”, relata.
Derblay ficou mais de uma semana com a respiração debilitada. Precisou de oxigênio, mas não chegou a ser intubado. Com cinco dias, passou para a UTI semintensiva e, após 10, recebeu alta médica, para continuar a recuperação em casa. A saída teve festa da equipe de saúde que o acompanhou.
Enfermeiros, fisioterapeutas e médicos fizeram um corredor para se despedir, com aplausos, do paciente que venceu a covid-19. Agora, no Natal, ele conta que se sente com corpo e consciência renovados. “Hoje, estou bem de saúde, me alimentando e dormindo, bem da cabeça. Sempre fica uma ‘sequelazinha’, mas faço fisioterapia e me cuido. Se pudesse fazer um pedido natalino, pediria logo a nossa vacina. Tem muita gente que não se cuida, sai para a rua e leva o vírus para casa. Este ano, encaramos um problema coletivo, não individual”, observa Derblay.
Valor ao tempo
As incertezas de como seria chegar ao fim deste ano eram ainda maiores para quem se contaminou com a covid-19 quando surgiam os primeiros no DF. E o medo de um vírus até então pouco conhecido afetou, também, a comunidade médica. Salua Hassan, 30 anos, trabalha como clínica geral e recebeu o resultado positivo em março. “Cheguei a ter sintomas como falta de ar e dor no peito. Fui ao hospital duas vezes, fiz tomografias, e os exames mostraram alteração laboratorial. Mas não precisei ser internada”, diz. “A gente fica com aquela insegurança, até porque foi no início. Não havia tanto conhecimento sobre a doença. Fiquei um pouco confusa. Do terceiro ao quinto dia foi o pior período. Andava um pouco e sentia um grande cansaço, até que fui apresentando melhora gradual”, detalha Salua.
Em meio aos sentimentos negativos de ter de lidar com uma pandemia e estar infectada, sobressaíram-se qualidades básicas necessárias a um profissional da saúde, como a empatia. “Nesse estado, a gente pensa muito no outro. Moro com uma amiga e me preocupei com ela. Fiquei trancada no quarto, sem qualquer tipo de contato. Quando voltei ao trabalho, enfrentávamos a situação de pais e mães de conhecidos que morriam; de pessoas que precisavam de nosso apoio; da demanda por substituições e remanejamentos de escalas”, afirma.
Do período da contaminação de Salua até este Natal, foram nove meses de trabalho intenso durante a crise sanitária. Mesmo assim, o cansaço não impediu reflexões positivas por parte da médica. “Acho que foi um ano em que aprendemos a dar mais valor ao tempo disponível para passar com quem amamos. Às vezes, a gente fica adiando. Temos oportunidades de encontro, temos saúde, mas não usamos essa disponibilidade. Neste período, adotei um cachorrinho, liguei muito para minha família — que está no Tocantins — e quero fechar o ano com uma ceia em casa, com minha amiga, fazendo uma chamada de vídeo com minha mãe e meu irmão. Quero aproveitar o tempo com quem amo”, completa a médica.