Não é exagero dizer que sem abelhas não haveria vida na Terra. Esses pequenos insetos, por vezes menosprezados ou indesejados pelos humanos, são fundamentais para a polinização — ou seja, para a reprodução das plantas, sem as quais não existiríamos. E, se elas são tão importantes assim para a humanidade, o valor é maior para João do Mel, meliponicultor de ofício há mais de quatro décadas na cidade de Belterra, na região metropolitana de Santarém, no Pará, a 724km de Belém. Nos últimos anos, ele viu sua chácara tornar-se uma “ilha de biodiversidade” em meio à uma Amazônia cada vez mais devastada.
A expressão “ilha de biodiversidade” é da jornalista carioca radicada em Brasília Mara Régia, 69 anos. Ela, ao lado da também jornalista Elizabeth Oliveira, é autora do podcast A morte dos polinizadores, que, em três episódios, narra a história de João do Mel, que tem como pano de fundo a destruição da maior floresta tropical do mundo. A obra foi selecionada pela organização norte-americana Pulitzer Center como uma das histórias do ano — a única em português entre as 33 escolhidas. O podcast pode ser conferido no site amazonialatitude.com e nas plataformas de streaming.
A ideia para a reportagem — que contou com o financiamento da iniciativa Rainforest Journalism Fund, dedicada a apoiar projetos jornalísticos independentes sobre meio ambiente — surgiu há 13 anos, quando Mara presenciou, em Lucas do Rio Verde (MT), um avião espalhar, por acidente, o herbicida Paraquat, altamente tóxico ao ser humano, sobre uma cidade inteira. Mara passou a acompanhar o desdobramento do caso, mas encontrou resistência entre a população, que tinha medo de contar a história. Graças a outros jornalistas ambientais, ela chegou a João do Mel em Belterra (PA), a 1.400km do município mato-grossense.
Mara, que tem uma trajetória de 41 anos, dos quais boa parte foi dedicada a temas ambientais, partiu então para o coração da Amazônia em fevereiro, às vésperas da pandemia — “Mais uma semana a gente não faria”, brinca —, onde ouviu histórias sobre o impacto da morte das abelhas na população local e as contou, tornando-as, agora, mundialmente conhecidas.
Como recebeu a indicação?
Toda vez que você tem o seu trabalho reconhecido, ainda mais pelo Pulitzer Center, considerado o Oscar do jornalismo, é uma honra, um prazer imenso, uma coisa que acontece uma vez na vida e outra na morte (risos). Que bom que aconteceu comigo antes da morte! É a coroação de um trabalho que custou muitas horas de gravação, você sabe que a Amazônia é sempre um desafio. Você sabe quando vai, não sabe quando volta. Depende muito das condições que você vai encontrar.
Como surgiu a ideia?
Essa história toda, o projeto em si, nasceu porque, há 13 anos, eu estava lá em Lucas do Rio Verde (MT) quando um avião desavisadamente pulverizou com Paraquat a cidade inteira, porque ele errou a mira. Em vez de despejar o veneno nos plantios de soja, ele acabou despejando em cima mesmo da cidade. E quis o destino que eu estivesse chegando e cheguei a tempo de respirar aquele veneno e, ao mesmo tempo, ver o desespero das pessoas, principalmente no dia seguinte, com as plantas totalmente chamuscadas, uma coisa inacreditável. E o pior é que, anos mais tarde, a gente detectou que havia inclusive contaminação no leite com o qual as mães estavam amamentando seus filhos no peito. Então sempre foi uma coisa que me deu vontade de saber da real da vida daquelas pessoas que eu encontrei há 13 anos. E aí eu recebi um telefonema de uma liderança da agricultura familiar local que me pediu socorro pelo rádio, dizendo: ‘Mara, você precisa voltar aqui, precisa ver, já não tem uma abelha aqui, tá tudo um cemitério de colmeias, tá uma devastação, tudo por que o veneno não tá perdoando, tá matando tudo, tá acabando com tudo. Eu falei: ‘Vou voltar aí pra ver’ e esse foi o início do meu projeto.
Hoje, essas lideranças estão muito assustadas. Mau correu a notícia de que estaríamos voltando a Lucas do Rio Verde para fazer uma escuta, para visitar os locais mais penalizados pelo acidente e eles começaram a recuar. Quando eu comecei a pré-produção, começou o medo. Esse inclusive eu considerei um dos maiores desafios do projeto, que foi convencer as pessoas a falarem, porque eles têm medo de retaliação e esse, infelizmente, é um papel muito perverso do jornalismo, porque a gente vai, faz a matéria, dá repercussão, faz aquela história toda e lá pras tantas a gente vai embora e eles é que ficam ali sofrendo as consequências de terem falado mais do que deviam. Então realmente foi uma coisa que, quando eu apurei mais um pouco, veio o desespero total. Cheguei à conclusão de que não dava de jeito algum para ir lá e ninguém querer falar. É uma viagem caríssima. Tinha inclusive outras pessoas (na equipe) que sairiam de outros lugares. Então esse projeto teve essas descontinuidades. Num primeiro momento, quem iria comigo era uma equipe, mas aí o tempo foi passando e com a dificuldade de fechar, a gente teve que começar a farejar outros cenários, onde a morte das abelhas estivesse acontecendo também. E aí como você tem uma rede de jornalistas que fazem a questão ambiental, trabalham a pauta ambiental, não foi difícil encontrar. Acabei chegando nesse personagem que é o senhor João do Mel, que mora em Belterra, que fica a mais ou menos 40km de Santarém.
O senhor João do Mel, igualmente, como liderança, estava super reticente. Não queria falar com ninguém, não queria nada, desgostoso. Foi preciso todo aquele trabalho de convencimento. Eu achei uma equipe local e a Elizabeth Oliveira que é uma jornalista que até já publicou livros de sustentabilidade, que eu já conheço há mais de 20 anos, topou essa empreitada de viajar comigo, porque quando você vai fazer um projeto desses que você tem riscos dos mais inesperados — que pode ser desde uma cobra na mata que te pegue até passar mal — o show tem que continuar. Eu desaconselho qualquer pessoa a fazer uma viagem para a Amazônia nesse contexto de reportagem-denúncia, de investigação, sozinho, então você precisa ter parceria. Parceria é a palavra, parceria para tudo. Pra vida, pro trabalho. E a Elizabeth é fantástica, é uma pessoa muito sensível.
Do que trata o podcast?
João do Mel é um sujeito que viveu uma vida a partir da melipolinicultura, era um melipolinicultor muito famoso, dava palestras no Brasil inteiro, era tido como uma pessoa referência e hoje o que ele está fazendo é artesanato com as árvores que restaram no lugar, fazendo mesa, cadeira. Teve que abandonar e tá ali com quase nada de colméia para que a espécie da Jandaíra não acabe, porque acabou tudo. Em torno dele tem o seu Natalino, que é um pastor que também fazia o mesmo trabalho que ele, são irmãos, inclusive. Tinha também o seu Lauro que tá numa cadeira de rodas, vivendo um momento bastante difícil porque, depois que ficou tetraplégico, que caiu de uma escada, ele vivia das galinhas e numa pulverização a menos de 5 metros da casa dele, onde ele tinha as galinhas, os abacates, as mangas, ele perdeu tudo. Está morrendo de fome e não tem a quem chamar para socorrer. Esse pessoal fica à míngua esperando que aconteça alguma coisa para que haja providência e essa coisa é fazer uma matéria de impacto dessa que, inclusive levou outros veículos de comunicação a Belterra pra ver. Nisso eu conheci outros personagens que também estão aí, tanto do ponto de vista científico, como o professor Bessa, que faz pesquisas profundas a respeito dessa questão, e também outras pessoas que a gente foi ouvindo fora do eixo lá, de outras universidades que fazem essa pesquisa. Com isso, a gente acabou tendo uma dimensão grande. Eu fiz a história de Belterra como a própria história do Brasil. A gente teve uma colonização devastadora. A gente é vítima dessa exploração, dessa ganância dos que chegam para levar tudo, não deixando pedra sobre pedra.
A gente hoje vive uma situação em que o mundo está muito de olho na preservação da Amazônia. Como vê o reconhecimento do Pulitzer Center nesse contexto? É uma forma de chamar a atenção do mundo para o problema?
Sim, com certeza. De repente traz à luz a situação dramática desses agricultores familiares que estão impedidos de fazer o seu trabalho. Está todo mundo sofrendo.São vidas que têm que aposentar seu sonho antes da hora. Eu tenho 40 anos de Amazônia. Quando você está em contato com pessoas que têm um profundo amor pela natureza, pessoas que têm compromisso com a floresta, se você tira isso, se eles perdem essa dimensão, eles perdem a vida. É uma coisa absurda, triste. Tinha dias que eu chorava. Fora o desamparo. Tem gente usando o veneno para se livrar dos mosquitos, dos bichos, das formigas que atacam. Pegam o veneno e botam nas pernas, nos braços, como se fosse um repelente. Você vê muita gente doente e não tem a menor informação de que aquilo pode dar câncer, de que aquilo é ruim, que ele precisava ter uma bota, precisava se proteger do sol, que ele precisava de um chapéu.
Como foi o processo de produção? Você produziu 58 horas de material bruto...
A Amazônia não dá pra você ir e voltar já (risos). Nós delimitamos o campo, nos fixamos ali e fizemos contatos antes para que as pessoas estivessem sem que a gente precisasse se deslocar. Ficamos em Belterra, foram oito dias entre ida e vinda, mas intensos, um intensivão. Saindo cedo, às 7h, e voltando às 21h.
Quando foi a viagem?
A viagem foi em fevereiro. Assim que a gente voltou, quando começamos a degravação, veio a pandemia. Falei: ‘Meu Deus, fomos salvos pelo gongo!’. Mais uma semana a gente não faria. Foi assim na bucha, foi incrível.
Você é carioca, certo? Como chegou a Brasília? E ao rádio?
Carioca, sempre fui ‘radioapaixonada’, porque minha avó era noveleira, assídua ouvinte da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A gente era pequeno e ficava ouvindo novela no cair da tarde, e eu me lembro que uma das primeiras fugas que eu fiz, saí do bairro que eu morava e fui no centro da cidade só pra conhecer a Rádio Nacional, tamanha a curiosidade que eu tinha de conhecer os artistas e ver a coisa toda. Já vinha daí, mas minha mãe ao me batizar de Mara Régia deve ter tido alguma intuição de que meu destino seria a Amazônia. Do Rio comecei a fazer uma ponte com São Paulo, porque conheci o pai dos meus filhos em ponte aérea. Fui assistir um show do Raul Seixas com Paulo Coelho na direção, encontrei ele e a gente começou a namorar. Tivemos um namoro de ponte aérea de 3 anos e meio, nos casamos e fomos morar em Londres onde ele tava fazendo a graduação dele e eu fui fazer história da arte. Tava longe desse universo de rádio.
Voltamos para o Brasil, ele veio a convite trabalhar em Brasília, e eu vim na bagagem. A essa altura eu fui trabalhar com o Tetê Catalão em uma agência de publicidade, só que na época a gente só fazia varejo e eu tava achando tudo muito sem graça. Falei sabe o que mais? Eu vou é para o jornalismo. E fui fazer jornalismo na UnB. Então um amigo me falou: ‘Menina você não vai acreditar! Tem um negócio que é a sua cara. Acabaram de criar a Rádio Nacional da Amazônia e tão precisando de gente para trabalhar lá’. Falei: ‘Você tá doido, não conheço a Amazônia, nunca fui num estúdio de rádio’. Ele falou: ‘Não, vai que você dá para isso’. Fui pra casa, aquilo ficou na minha cabeça. ‘Pelo menos por curiosidade vai lá ver o que é essa rádio.’ Aí fui, fiz um teste e passei. Comecei a trabalhar e me apaixonei. Em três meses já era uma pessoa completamente abduzida pela magia daquela gente que escrevia cartas memoráveis e aquela força viva da natureza. Daí começou a minha saga pela Amazônia.
Qual foi o impacto desta reportagem para você?
Você acredita que para fazer essa reportagem eu fiz até um curso (risos)? Para entender mais, para entender melhor a vida das abelhas. Então, a gente só cresce. Estar na Amazônia é estar no meio do mundo. Agora, é esperar o pós-pandemia, os desdobramentos, e espero voltar a Belterra. Não sei como, mas acho que a nossa função no jornalismo ambiental é cobrir processo. Eu acho que muita gente se ocupa da espetacularização do fenômeno, seja quando cai uma barragem, seja diante de uma seca absurda. Aí faz e não volta nunca mais pra ver como ficou. O que eu quero é ver como a gente consegue transformar a vida dessas pessoas. Eu agradeço imensamente ao Rainforest pela oportunidade de beber na fonte, que é estar com essa brava gente brasileira, gente que faz, que é árvore, que é tronco. Eu vejo o seu João do Mel como um pequiá, que é aquele fruto maravilhoso da Amazônia, aquela árvore linda. Eu o vejo assim. Ele é um guardião da mata, vive cercado. É um oásis de biodiversidade em meio àquela devastação toda em volta dele. Um símbolo de resistência.