Memórias do festival
“Só faltou a cervejinha”, comentou a cineasta Laís Bodansky, a diretora do filme Bicho de sete cabeças, em deliciosa live de memórias do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, mediada por Sérgio Moriconi. As duas horas passaram voando porque as histórias eram saborosas. Pincei algumas. O festival marcou o nascimento de atores, de diretores e de filmes.
Murilo Salles trouxe a Brasília a fita Como nascem os anjos, em 1996, uma fábula cinematográfica, com uma dramaturgia audaciosa. Só ganhou o candango de Prêmio Especial do Júri com a dupla de atores-mirins, mas, em compensação, arrebatou o público, que aplaudiu de pé e concedeu o candango de Melhor filme do júri popular. Todos choravam lágrimas de esguicho.
Os pernambucanos invadiram Brasília em 1996 durante a exibição de O baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Dormiam 14 em cada quarto do hotel. No primeiro plano, com música de Chico Science, o diretor de produção Claudio de Assis berrou: “Este plano é duca! É duca!”. A plateia do Cine Brasília inteira veio abaixo. O baile perfumado faturou quase todos os prêmios, menos o da trilha sonora magnífica, de Chico Science e Fred Zero Quatro.
Quem ganhou o de trilha foi Sérgio Ricardo, pela música de Avenida Brasil. De volta para o hotel, Lírio tomou uma van e sentou-se bem em frente a Sérgio Ricardo, que disse: “Cara, quem merecia ganhar era o Chico Science, pega esse Candango e leva para ele”. Lírio recusou com reverência e chorando: “Pelo amor de Deus, não faça isso, nós estamos felizes”.
Todos eram estreantes do cinema em Bicho de sete cabeças, de Laís Bodansky. Quando a equipe subiu ao palco, Rodrigo Santoro, identificado como ator global, atraiu as vaias estrepitosas do público brasiliense. Os apupos vazaram para os cinco primeiros minutos de exibição. Depois, imperou um silêncio tenso. Mas, quando o filme terminou, houve uma comoção do público brasiliense, que transformou as vaias em aplausos frenéticos.
As pessoas pulavam sobre Rodrigo Santoro: “Eu te vaiei, mas queria dizer que eu estava errado, você é um grande ator”, disse um espectador. Para Laís, não existe nenhuma plateia como a do Cine Brasília: “A gente espera que ela vaie, e ela não nos decepciona. É uma plateia crítica, política e vibrante”.
Embora não tenha sido convidado para a live, tenho as minhas histórias sobre o festival. José Damata, o comandante do Cinema Voador, é uma mistura de Cancão de Fogo com Zé do Telhado, heróis picarescos da literatura de cordel. Ele tinha a mania de “matar” verbalmente e pacificamente grandes personagens da cultura: “Caiu um avião com Chico Buarque”. Até que o boato se desfizesse, rolava muita confusão.
Em uma edição do festival, Damata exterminou Fernando Lemos, secretário de Cultura do DF, amigo de Glauber Rocha e de tantos outros cineastas. Bem-humorado, Lemos telefonou para Damata e quis saber da repercussão da sua morte nos bares da cidade: “Metade ficou triste, metade adorou”, informou Damata com o maior descaro.
Ao fim da live, todos os participantes celebraram a resistência do evento em plena pandemia. Viva o Festival de Brasília! Viva Brasília! Viva o Cine Brasília! Viva a vaia! Viva Vladimir Carvalho.