“Ele tinha o desejo de montar o próprio restaurante e trabalhava duro para isso, mas, um dia, esse sonho foi interrompido.” O depoimento é de Maria Sodré, 56 anos, mãe de Maurício Cuquejo Sodré, 29. O jovem era motorista de transporte por aplicativo e morreu em 23 de janeiro, vítima de latrocínio, durante o trabalho. A dor da cuidadora de idosos se compara à de outras três famílias que perderam entes queridos na mesma circunstância somente este ano.
O Correio conversou com parentes de profissionais vinculados às empresas de app que perderam a vida enquanto trabalhavam. As famílias, hoje, lidam com a saudade e se confortam nas lembranças. Dados do Sindicato dos Motoristas Autônomos de Transportes Privado Individual por Aplicativos (Sindmaap-DF) mostram que pelo menos um motorista é assaltado todos os dias no Distrito Federal.
Além dos familiares, a onda de violência e a sensação de insegurança vivida pelos trabalhadores dessa categoria preocupa autoridades, empresas e associações, que buscam formas para combater crimes desse tipo. Especialista em segurança pública pela Total Florida, Leonardo Sant’Anna considera as medidas de segurança “frágeis” por parte do governo e pelas instituições responsáveis pelos aplicativos.
“Temos uma classe política pouco engajada em resolver o problema e uma cultura de segurança que precisa ser modernizada. Ainda temos organizações que visam, exclusivamente, o lucro e muito pouco a qualidade de vida dos trabalhadores e segurança de quem usa os apps”, avalia o especialista.
De acordo com Sant’Anna, ações para combater, especialmente, crimes de tentativa ou de latrocínio exigem uma legislação mais rigorosa. Outro ponto citado por ele é o investimento em tecnologia. “Os meios modernos estão tomando espaço a ponto de haver transmissão das imagens de tudo o que acontece no interior desses veículos, como ocorre em outros países. Isso permite tanto a segurança do condutor quanto a do cliente”, afirma.
Medidas
Em Brasília, mais de 32 mil pessoas trabalham como motoristas de transporte por aplicativo, segundo dados do Sindmaap-DF. O presidente da entidade, Marcelo Chaves, acredita que, para dar segurança à classe, é preciso investir em algumas medidas. “Todos os dias, um motorista é roubado ou sofre tentativa de assalto. Vou continuar batendo na tecla do reconhecimento facial do passageiro, que é muito importante para todos”, frisou.
A Uber afirmou, por meio de nota, que a instituição tem buscado, por meio da tecnologia, fazer a plataforma mais segura, com ferramentas de proteção antes, durante e depois da corrida. “Foi anunciada, recentemente, a introdução da checagem de documentos de usuários. Com isso, usuários que optarem por pagar sua primeira viagem em dinheiro, sem fornecer dados do meio de pagamento digital, precisarão fornecer um documento de identidade.”
A empresa acrescentou, ainda, que utiliza o recurso “machine learning”, ferramenta que usa algoritmos que aprendem, de forma automatizada, a partir dos dados históricos de viagem e bloqueia aquelas consideradas potencialmente mais arriscadas. Em casos de uma parada longa e não prevista na rota ou se a viagem terminar fora do destino planejado, a Uber afirmou que pode iniciar uma checagem e enviar uma mensagem para o motorista parceiro, perguntando se é necessário algum suporte.
A 99 também se posicionou por meio de nota oficial e garantiu que, este ano, investiu mais de R$ 35 milhões em ferramentas e sistemas preventivos de proteção. “O resultado foi a redução de 22,5% das ocorrências graves registradas na plataforma por milhão de corridas, de janeiro a novembro”, destacou.
“Do começo ao fim de todas as corridas do app, a câmera registra imagens e, no momento em que o motorista aciona o botão de segurança que acompanha o dispositivo, a Central de Segurança da 99 é avisada e o monitoramento da corrida em tempo real começa. As imagens captadas também podem ser usadas para ajudar as autoridades na identificação de pessoas que cometerem eventuais infrações. Se necessário, a polícia é contatada”, complementa a nota da empresa.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) informou que realizou reuniões com representantes das empresas de aplicativos de transporte, com o objetivo de discutir soluções para reduzir a vulnerabilidade dos profissionais e passageiros que utilizam este serviço. “Entre as medidas tratadas nos encontros, por exemplo, surgiu a opção de restrição aos pagamentos em dinheiro e a possibilidade de pré-visualização do destino por parte do operador”, esclareceu a pasta, por meio de nota.
A Polícia Militar garante que, rotineiramente, faz pontos de bloqueio em lugares estratégicos, em que todas as pessoas presentes nos veículos identificados como transporte de passageiros com o uso de aplicativos são revistadas, para garantir a segurança da categoria e da população.
Sonho interrompido
Formado em gastronomia, o sonho de Maurício Cuquejo Sodré, 29, era abrir o próprio restaurante. Para ajudá-lo, a mãe, Maria Sodré, 56, lhe presentou com um carro para ele trabalhar como motorista de transporte por aplicativo e juntar o dinheiro necessário. “Foi uma forma fácil que ele encontrou para montar o estabelecimento e não ser empregado de ninguém. Tinha oito meses e estava querendo deixar o serviço, pois dizia que estava muito pesado, cansativo e doloroso, até porque ele tinha um problema nas pernas”, conta ela.
Era mais um dia de trabalho, em 23 de janeiro, quando Maurício aceitou uma corrida solicitada pelo aplicativo de um dos suspeitos. O jovem estava na Asa Norte e seguiu até a Granja do Torto para buscar outro grupo. Quando Maurício chegou ao endereço do quarteto, três deles, incluindo um adolescente, o renderam.
Pelo menos dois dos jovens estavam armados com facas. Maurício levou diversas facadas na parte de trás da cabeça, no lado direito do pescoço e na face. “Eu até cheguei a perdoá-los à época, mas quando vi o corpo do meu filho, no necrotério, fiquei arruinada. Judiaram muito dele, sem piedade. Foram perversos”, desabafa a mãe.
Em agosto, Maria teve de lidar também com a morte do marido, que perdeu a luta contra a covid-19. “Hoje, eu lido muito bem com minhas dores, porque sei que, quando a pessoa é boa e tem bons princípios, Deus tem um bom lugar para elas. Sei que meu filho e meu esposo estão com Deus e estão melhores do que nós”, completa.
Esforço pelo sustento
Era madrugada de 9 de fevereiro deste ano, quando Andressa Santos, 29, acordou preocupada com a ausência do marido, Túlio Russel, 27, que trabalhava como motorista de app e deveria retornar para casa, em Valparaíso (GO), ainda durante a noite. No telefone, a técnica de enfermagem viu que o veículo do companheiro estava parado em um ponto havia algumas horas, em Brasília. “Ele sempre compartilhava todas as viagens comigo, para me deixar mais segura. Comecei a mandar mensagens para ele, mas não recebi retorno. Ligava, e sempre caía na caixa postal. Foi quando decidi ir à delegacia.”
Pela manhã, policiais civis encontraram o corpo do motorista no Setor de Chácaras do Sol Nascente. Túlio foi vítima de latrocínio e baleado na cabeça após atender passageiros na região. À época, um jovem de 23 anos foi preso, e um adolescente de 15 anos, apreendido. Com o homem, os policiais encontraram uma arma calibre 22. “O que mais me deixa chateada é porque, durante uma conversa nossa, falei que ele estava trabalhando demais, mas ele insistiu, dizendo que queria comprar os móveis do nosso apartamento”, conta Andressa.
O casal morava junto havia dois anos, no Entorno do DF, e não tinha filhos. Descrito pela mulher como estudioso e inteligente, Túlio era graduado em direito e aguardava a convocação do concurso da Polícia Militar do DF. “Ele só falou que trabalharia como motorista para não ficar parado, porque não aguentava ficar quieto. As pessoas que fizeram isso com ele tiraram os sonhos dele e de toda a família.”
Para pagar a festa do filho
O sentimento ainda é de dor para amigos e familiares de Roosevelt Albuquerque da Silva, 31. Passados 10 dias do assassinato do motorista de transporte por aplicativo, parentes buscam explicações e razões para a morte do rapaz. “O que sentimos, ainda, é muita raiva por toda a crueldade que fizeram com o meu irmão, a forma como ele foi tirado de nós. Mas somos evangélicos, acreditamos em Deus, e esperamos a justiça Dele. O dia passa, ele não volta, está sendo muito difícil para todos nós”, conta a irmã de Roosevelt, Renyelle Alburquerque, 32.
Os policiais encontraram o corpo de Roosevelt na madrugada de 2 de dezembro, após atender a uma corrida da Asa Norte com destino a Sobradinho. Com as investigações, a equipe chegou ao paradeiro de um jovem, de 22 anos, e de um adolescente, de 17, envolvidos no crime.
Pai de dois filhos, de 5 e 7 anos, Roosevelt havia começado a prestar serviço a uma empresa de aplicativo uma semana antes de ser assassinado. O objetivo era quitar as dívidas e juntar dinheiro para comemorar a festa de aniversário do caçula, comemorado na terça-feira. “A lembrança que vai ficar dele é da viagem que fizemos com toda a família. Fomos a Maceió e foi incrível poder rever todos os nossos parentes. Ele era uma pessoa extrovertida, sorridente, trabalhadora e que contagiava o ambiente. Ele nos deixou dois meninos lindos, que vamos cuidar com todo o carinho. É o mínimo que temos de fazer”, finaliza a irmã.
Quarta vítima
No mesmo dia em que Túlio Russel morreu vítima de latrocínio, o policial militar da reserva Ângelo Sebastião de Ávila, 71, também foi assassinado após atender a uma corrida pelo aplicativo no Terminal Rodoviário de Sobradinho com destino ao Parque Marajó, em Goiás. O Correio não localizou familiares do militar. Após mais de um mês de investigação, policiais da 30ª Delegacia de Polícia (São Sebastião) capturaram duas mulheres e dois adolescentes acusados de cometer o crime. Segundo a apuração policial da época, Jackeline Oliveira e Beatriz Barros conheceram o militar um dia antes do crime e planejaram o assassinato. Ângelo foi morto com diversas facadas e teve o corpo jogado na rodovia. Os suspeitos abandonaram o carro da vítima em um terreno.