A pandemia provocou uma ruptura do teatro em Brasília quando ele vivia um renascimento. No ano passado, fui até a 508 Sul para assistir à peça O rinoceronte, de Ionesco, dirigida por Hugo Rodas. Dirigi-me ao guichê e pedi um ingresso para a peça. A bilheteira perguntou: “Mas, para qual peça? Temos quatro em cartaz”. Olhei para o lado e percebi que todas as quatro tinham fila para entrar na sala.
Mas a crise sanitária também provocou a criatividade. É o que podemos experimentar ao assistir ao Festival Cena Contemporânea. Ele é um dos maiores eventos de artes cênicas do país e da América Latina. Durante duas semanas, os brasilienses têm a chance preciosa de fazer uma imersão nas melhores produções do teatro local, nacional e internacional.
Antes da crise sanitária, ele invadia todos os teatros da cidade, com espetáculos brasilienses, nacionais e internacionais, instalando uma verdadeira babel transnacional das artes cênicas. Quase sempre, com salas lotadas.
No entanto, com a pandemia, o Cena teve de se reinventar em versão virtual. O interessante é que não se reduziu a ser um festival de teatro e dança filmado. Cada grupo inventou uma linguagem para expressar a sua proposta, mas sempre em uma perspectiva das artes cênicas. O grupo brasiliense de dança contemporânea Anti Status Quo, por exemplo, utilizou o formato da videoconferência para apresentar Juntos e separados.
No início, a gente vê a tela dividida em quadradinhos com cada um dos integrantes do grupo. Mas, aos poucos, os enquadramentos são subvertidos, os rostos se estilhaçam com interferências de signos, o espaço convencional se desintegra, a música entra e dita o ritmo vertiginoso. As imagens dançam em compasso de videoclipe. É uma linguagem em quadrinhos, milagre da multiplicação de imagens transbordantes, com sinais de bits e sons brasilienses rascantes ao fundo.
O título da peça dirigida por Francis Wilker é quase um manifesto: Aquilo que eles não podem demolir enquanto eu falar. É um encontro pungente com os fantasmas da Oficina do Perdiz, um teatro encravado na Asa Norte, demolido pela especulação imobiliária. A memória afetiva torna-se um ato de resistência e uma declaração de amor ao teatro.
Há eventos que são mais do que eventos. Não se esgotam em si mesmos e continuam agindo em uma cidade depois que acontecem. Entram na corrente sanguínea da cultura. Esse é o caso do Cena Contemporânea. Todos os que amam o teatro na cidade beberam na sua fonte. É um evento que, a um só tempo, desprovincianiza a cidade e projeta os grupos que fazem teatro em uma cena contemporânea.
É muito importante a resistência do Cena, do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e do Clube do Choro, entre outros eventos e instituições essenciais para a cultura na cidade. O Cena prossegue até sexta, com exibições virtuais gratuitas no site do evento. Como bem dizia o embaixador Wladimir Murtinho: “Capital não pode ser passiva; capital tem de irradiar”.