MUITO OBRIGADO

Conheça histórias de quem atuou na linha de frente de combate à covid-19

Aos profissionais do ano. Trabalhadores da saúde viveram o ano da pandemia com atendimentos em excesso, pouco descanso e muita dedicação. Hoje, o Correio traz histórias de quem ajudou na linha de frente

Alan Rios
Caroline Cintra
postado em 30/12/2020 06:00
 (crédito: Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal - Ana Rayssa/CB/D.A Press)
(crédito: Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal - Ana Rayssa/CB/D.A Press)

Plantões exaustivos. Dificuldade para respirar provocada pelo uso de incontáveis itens de proteção. Pacientes próximos do fim da vida e longe da família. Choro de tristeza, por mais uma morte causada pelo novo coronavírus. Choro de alegria, por quem recebe alta. Lágrimas de cansaço. Profissionais da saúde do Distrito Federal encararam todos esses momentos, diariamente, neste ano. Médicos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas e diversas outras categorias enfrentaram a tragédia causada por uma pandemia com a missão de não abaixar a cabeça, pois os esforços deles garantiram mais corações batendo em 2021. Conheça histórias desses trabalhadores, que se mantiveram firmes e foram responsáveis, em algum momento, pelo tratamento dos mais de 16 mil pacientes hospitalizados com covid-19 no DF. Por meio das fotos que ilustram estas páginas, o Correio homenageia todos os profissionais de saúde que estão ou estiveram na linha de frente para salvar vidas.

Na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional de Ceilândia (HRC), há um mural feito pelas equipes de saúde com fotos de alguns desses pacientes. Junto às imagens, a frase: “Eles venceram graças a vocês”. Renata Sousa de Almeida, 32 anos, chefe do setor de atendimento a adultos, observa os registros quando precisa de forças. “Este foi um ano de reinvenção. Tivemos de repensar muitas coisas a respeito da profissão e colocar o coração ali, porque éramos a única referência de humanidade para os pacientes isolados. A gente sempre foi profissional, mas isso não nos impede de ser humano. Tratei os pacientes como se fossem pessoas da minha família. Isso traz mais empenho, mesmo que (nos) machuque um pouco mais. É um esforço extra, um choro a mais, mas vale a pena, porque as feridas são curadas com o retorno deles às famílias”, desabafa.

Ao longo deste ano, Renata teve de se isolar dos pais e da irmã. No trabalho, a médica viu jovens não resistirem à covid-19, ouviu parentes implorarem pela vida de pacientes, atendeu funcionários do próprio hospital e virou heroína de muitos recuperados, que voltaram ao HRC para agradecer pessoalmente a vitória sobre o coronavírus. “As Renatas de 2019 e de 2020 são pessoas diferentes. Eu me vejo mais capaz, humana e corajosa. Daqui a 10 anos, vou lembrar que estava ali e que consegui salvar muitas vidas. Daquelas que não salvei, acolhi as famílias, fui empática com a dor e pude passar conforto”, comenta.

Apesar da força adquirida, ela destaca que não é fácil pensar sobre a perspectiva de mais consequências trágicas da pandemia, em 2021. “Fiz muita terapia, promovemos acolhidas entre as equipes nos fins dos plantões, recebi apoio de minha família e do meu marido, mas estamos recebendo cada vez mais pacientes com covid-19, e o medo (nos) assola. Sou apaixonada pela medicina, mas é triste ver comportamentos que poderiam ser evitados para controlar o (contágio pelo) vírus”, lamenta.

Dificuldades

Isolar-se da família foi uma das maiores dificuldades que a enfermeira emergencista Jenne de Souza Silva Carvalho, 30, enfrentou durante um ano de pandemia. Saindo de casa apenas para o trabalho, a rotina de abraços e muito afeto ao chegar do expediente não existe mais. Funcionária de um hospital particular de Ceilândia, ela tem duas filhas pequenas, de 3 e 7 anos, e não teve com quem deixá-las nesta fase. Por isso, ao voltar da unidade de saúde, vai direto para o banho, em um banheiro diferente do usado pelos demais familiares. Os pratos, talheres e copos das refeições também ficam separados. E, na hora de dormir, ela vai para um quarto afastado. “Até dentro do hospital, a gente lida (uns com os outros) como na família, sem poder receber carinho dos colegas. Está sendo muito difícil”, desabafa.

Jenne conta que, assim que soube da chegada da covid-19 ao DF, imaginou que a situação seria revertida rapidamente. No entanto, foi surpreendida pelo número de infecções, que não parava de subir. “Quando veio o primeiro caso para a gente, foi desesperador, porque não imaginei que algo de tão longe chegaria até onde estávamos. Lidar com os óbitos diários é difícil, porque estudei para dar assistência. Não conseguir reverter o quadro de um paciente é doloroso”, relata.

Uma das situações mais marcantes para ela foi a de um homem de 32 anos que morreu por complicações da doença. Ele não tinha comorbidades diagnosticadas, mas era obeso e teria contraído a covid-19 no trabalho, único local para onde ia. “A mulher dele estava grávida de gêmeos. Eles tinham um ano e meio de casados e o sonho de serem pais. Mas ele não resistiu e morreu. Era muito jovem. Até então, eu só tinha pego casos de pacientes idosos. Esse foi um dos mais tristes para mim”, comenta Jenne.

Por outro lado, houve histórias com finais felizes. Uma ocorreu na última semana, quando uma paciente idosa, diabética, hipertensa e obesa que passou 32 dias intubada voltou ao hospital para agradecer à equipe que esteve com ela durante todo o processo de recuperação. “Ela trouxe lembrancinhas, (estava) sem sintoma nenhum. Essa é a parte gratificante de todo o nosso esforço”, diz a enfermeira.

A cozinheira Maria Alzenira da Silva, 56, também ficou sob cuidados de Jenne. Assim que teve a confirmação de que estava com o novo coronavírus, foi ao hospital onde a enfermeira trabalha, mas, como não tinha plano de saúde, precisou ser levada para uma unidade da rede pública. “A Jenne e a médica cuidaram muito bem de mim. Hoje, é tão difícil ver profissionais atenciosos assim. Fiquei muito surpresa com o tratamento, e elas fizeram de tudo para me encaminhar para o Hospital Regional de Santa Maria (HRSM). Graças a Deus, depois de passar por tudo isso, estou curada e bem. Só tenho a agradecer”, destaca Maria.

Barreiras

Manoel Ribeiro Neto, 49, sai de casa todos os dias sabendo que pode se expor ao novo coronavírus, mas, também, ciente de que um trabalho bem-feito pode salvar vidas. Técnico de enfermagem do Hospital de Apoio de Brasília (HAB) e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), ele atua na linha de frente dos atendimentos. “Quando recebemos um chamado, a abordagem do técnico de enfermagem é fundamental, porque temos de identificar todos os sintomas do paciente, estabelecer o tipo de tratamento primário e qual unidade de saúde vai recebê-lo”, detalha.

Manoel auxiliou a população a enfrentar a pandemia por meio dos atendimentos de ocorrências, com transferências de pacientes e auxílios domiciliares, por exemplo. “Todo dia, temos situações de encontrar pessoas entre a linha da vida e da morte. Todas as vezes que atendemos e levamos a um hospital, estamos levando para a vida. Mas é difícil. Neste ano, tudo foi atípico. Somos seres humanos, que temos nossos cansaços e problemas, mas precisamos nos superar (isso) a cada dia”, conta.

Manoel lembra as dificuldades do começo da pandemia, em que os protocolos mudavam de forma constante, na medida em que se conhecia mais sobre a transmissão do vírus. “Estabelecemos protocolos de atendimento, mas eles foram se aperfeiçoando. A gente conversa com o paciente para ele manter distância das pessoas da casa, pede uso de máscara, diz que, se ele tiver falta de ar e for tossir, tem de virar para o outro lado. Ou seja, fomos estabelecendo barreiras da covid-19 no DF. Essa missão nos foi dada, então fazemos com dedicação e amor”, afirma o técnico de enfermagem.

Outro trabalho fundamental para evitar a disseminação do novo coronavírus é identificar a presença dele. Nessa função, foram essenciais os laboratórios de medicina diagnóstica. Maria Luísa Mangueira, 24, não imaginava, no começo do ano, que terminaria 2020 como estagiária do setor de biologia molecular em um deles. Estudante do 6º semestre do curso de farmácia, ela atua no processamento de amostras de testes da covid-19. “É um orgulho trabalhar para que eu, com o conhecimento que tenho, possa fazer minha parte em meio a uma pandemia. Sempre quis ser da área da saúde para ajudar os outros”, comenta.

Em média, são cerca de 3 mil testes verificados diariamente pelos equipamentos. Mas essa quantidade começou a subir nas últimas semanas. “É bem complicado, porque a gente vê, de dentro, o tanto que estamos trabalhando. E ainda há o medo de manipular aquilo todo dia. Mas, sempre que olhar para trás, vou ter o sentimento de pesar, só que o de dever cumprido também”, considera Maria Luísa.

Exaustão

Endocrinologista e médica reguladora do Hospital Regional da Asa Norte (Hran), Julianne Maia, 32, afirma que, em nove anos de profissão, este foi o mais exaustivo. Para ela, lidar com uma doença nova e que se manifesta de maneira diferente em cada paciente dificultou a agilidade dos tratamentos.

Considerado hospital referência no tratamento da covid-19 no DF, o Hran recebeu milhares de pacientes, dos mais variados perfis. Inclusive, a primeira pessoa diagnosticada com a doença na capital federal, a advogada Cláudia Maria Patrício Costa da Silva. “Quando paro para pensar nas pessoas que passaram por aqui, essa é a que mais fica na mente. Era o primeiro caso, não tínhamos muita informação”, recorda-se Julianne.

Maria da Conceição Britto, 63, passou 15 dias internada no Hran. Com 50% do pulmão comprometido, ela se lembra dos momentos ruins que teve durante o tratamento. “Eu creio muito em Deus, mas é impossível não pensar na morte. A falta de ar foi o que mais me assustou. Você puxa e ele não vem. Para mim, quase não tinha esperança. Perdi uma vizinha, que teve a doença enquanto eu estava no hospital, e imaginei que meu fim seria igual”, confessa. Para ela, a equipe de saúde foi fundamental para a recuperação. “Tinha medo de eles terem algum tipo de preconceito com a doença, de serem contaminados. Mas foram tão atenciosos. Foi a coisa mais linda de se ver. Sou grata, porque estive no lugar certo”, completa Maria da Conceição.

Conhecimentos
Em contato direto com pacientes diagnosticados com a covid-19 desde o início da pandemia no DF, o intensivista Rodrigo Biondi,43, sofreu com o cansaço — em nível físico e psicológico — provocado pelo período intenso de trabalho. Além do aumento da carga horária, precisou lidar com um cenário de inúmeras mortes. “Nunca vi tanto paciente morrer”, conta.

Normalmente, a UTI em que ele atua recebe um paciente com infarto por dia. Após a pandemia, a equipe da unidade recebia oito, aproximadamente. “Tive colegas que pegaram a doença e ficaram em estado grave. Eu peguei, e foi leve, mas fiquei com medo, porque não dá para saber sobre ela. É uma indefinição”, comenta.

Esse também foi um dos pensamentos de César Romero, 29, coordenador do pronto-socorro de um hospital particular. “No pico da pandemia, vimos centenas de novos casos e de novas mortes por dia. Esse medo aumentava, não só pelo desconhecido coronavírus, mas, também, por nossa saúde e pela de nossos familiares. Temíamos adquirir a doença no trabalho e levá-la para casa. Nos privamos do convívio com os familiares, por medo da transmissão”, relata.

César considera que olhar todos os esforços das equipes carrega, também, um alívio, pela quantidade de vidas salvas. “Hoje, profissionalmente, terminamos o ano realizados, pois temos maior controle, além de mais conhecimento sobre a transmissão, a prevenção e o tratamento da covid-19. Evoluímos demais, porque, no começo da pandemia, não sabíamos se era melhor intubar o paciente, em qual período entrar com corticoide, as tecnologias de ventilação. Agora, são vários conhecimentos que (temos e que) diminuem a mortalidade da covid-19, atualmente, bem menor”, destaca o médico.

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