Crônica da Cidade

Nada mais será como antes

Ler é uma forma de conversar com autores que já morreram. É fazer as histórias trafegarem, em alguns casos, entre séculos e continentes, com toda a filosofia, toda a melodia e toda a beleza que um bom livro pode trazer para o presente. Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, por exemplo, permite que o leitor caminhe aflito pela cidade russa de São Petersburgo de 1866. E Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicado em meados de 1900, leva-nos, ao lado do triste Bentinho, a uma São Paulo antiga, em uma ácida crítica à sociedade da época. E, na longa viagem, os mais observadores encontram muito daquele “ontem” no hoje, e boa quantidade de “hoje” no bom e velho ontem, questionando o quanto, de fato, o mundo mudou.
Nesses longos passeios, acontece, também, de nos tornarmos amigos não só do autor, mas, até, dos personagens — Tyrion ou Macbeth. E nos pegamos concordando ávidos, e discordando com igual veemência, ao acompanhar diálogos rápidos em um pub no leste europeu. O leitor acaba maior, embevecido por uma metáfora ou analogia transformadora, como a dos alienígenas misteriosos dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky, criaturas invisibilizadas pela incapacidade humana de compreendê-los, que partem deixando seu lixo venenoso para trás, colocando-nos no lugar de insetos que se deparam com os estranhos sinais de um Piquenique na Estrada.
Existem muitas formas de escolher um livro. Pelo título, pela capa, passando o olho na estante de alguém, depois de ler a respeito da obra em um jornal, de ouvir uma recomendação, pesquisando a influência de outros autores (Gabriel Garcia Marquez gostava de William Faulkner) ou assuntos que pululam segundo a realidade e os desejos de cada um. No último caso, é interessante como a trilha das letras pode se transformar à medida que as circunstâncias ao redor do leitor também mudam. Então, é possível saltar de uma série sobre história do Brasil e literatura nacional, para outra sobre diferentes formas de isolamento, graças à pandemia do novo coronavírus.
E gêneros lidos, autores, assuntos e épocas ajudam a demarcar um caminho individual. O escritor britânico Neil Gaiman conta que, ao selecionar uma série de histórias curtas para um livro, dispostas em ordem cronológica, pôde perceber as ideias que o influenciavam a cada momento, e como essa transformação mudou a forma de o escritor compor as narrativas. Era como se, ao reuni-las, ele pudesse perceber, escondida ali, outra história. Maior. De modo semelhante, com o benefício de diversificar ainda mais o repertório, o leitor também traça uma linha narrativa ao percorrer, distraído ou apressado, o tortuoso caminho que o levou de um livro para outro, criando um conjunto de histórias para enriquecer e engrandecer a própria vivência.
A aventura, no entanto, é perigosa. Ler vai borrar e apagar as margens da vida, ampliar o mundo, fazer-nos apaixonar por figuras que não existem. O leitor pode se descobrir amarrado para sempre ao jovem Hans Castorp, em um sanatório, em A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Ou a Ifemelu, imigrante mulher e negra de Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Pode-se, também, acabar de mãos dadas com figuras históricas inesperadas, como o poético e impetuoso Carlos Marighella. A única certeza da viagem é esse perigo. Sairemos tão mudados de um livro que saiba conversar quanto Bilbo e Frodo Bolseiro, após cruzarem a Terra Média em suas respectivas jornadas. E nada mais será como antes...