Crônica da Cidade

Nossos mortos (um breve conto)

Os meninos ali, no chão. Em volta de nós, zumbiam as moscas. Dois dias, no máximo. Não era comum, no começo, que fossem crianças. É sempre difícil precisar o horário exato da morte. Nunca sei quando o todo parou de funcionar, quando o corpo humano cedeu aos impulsos violentos de qualquer que seja o dano.

Fazia alguns meses que nos colocamos naquela posição de encontrar os restos expostos e abandonados e tentar dar a eles um destino respeitável. Somos voluntários. Lembro bem o dia em que ouvi na televisão que ultrapassávamos 50 mil mortos. A gente achava que o pior estava passando. Eu nunca acreditei que chegaríamos no ponto em que chegamos.

Meus avôs morreram um mês depois do dia em que vi a notícia de 100 mil mortes no jornal. O velho tinha uma história honrada e estava combalido nos últimos anos. Não o via há muito tempo. Estávamos isolados em cidades distantes. Chorei bastante quando soube como ele foi embora. Afinal, é estranho ver um herói partir sem nenhuma elegância.

Mas, acho que a morte do pai me pegou mais torto. Ele era jovem para os padrões de hoje. Parecia que ia suportar. No dia em que soube que ele estava morrendo, sentei na borda da varanda e fiquei balançando os pés no ar, acho que flertando com as minhas possibilidades. Não tive coragem.

Uns dias depois, entrei no bando. Não sei bem o que somos. Guerrilheiros ou garis que varrem nossas próprias dores? O legado maldito tem várias digitais, isso eu garanto. O presidente, ainda ontem, riu de nós. Nos chamou de mulambos. De urubus. Acho que ele queria mesmo o sangue e faz graça das vidas que não veneram a sua presença. “Deus tá conosco aí”, gritou, em volta de uns dois ou três corpos. Penso que quis dizer diabo. Só algo assim para o proteger desse jeito, e ele continuar por lá.

O corpo dos meninos ali, na rua. Dois meses atrás, talvez tivessem pais, nunca saberemos. Quem sabe até brincassem e sentissem algo parecido com alegria, por mais que fossem já, desde o início, filhos da desgraça no meio de um país arrasado. Não chorei. Nem tive medo, mas olhei para o lado e pensei em quem seria o próximo. É que, agora, a gente vive como se estivesse o tempo todo seguido pela sombra da morte.