Crônica da Cidade

por LUIZ CALCAGNO luizcalcagno.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

A segunda onda

“Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem.” A frase é de Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido como Lenin, revolucionário comunista e ex-primeiro-ministro da Rússia soviética. O galopar de 2020, com suas mudanças, evoca a frase como se pronunciada ontem. Em fevereiro, início de março, os ventos gélidos da pandemia davam ares apressados a figuras que se cobriam a caminho do trabalho, como que surpreendidas por densas nuvens e forte umidade nos pulmões. Logo, as gotas precipitadas pela evolução natural começaram. Primeiro, finas; depois, grossas. Levando vidas às dezenas, centenas, milhares.

Descobriu-se, então, que não se tratava de uma tempestade, mas de uma estação inteira, vinda de fora do imaginário, aterrissando ante olhares impotentes dos humanos, a empurrar e ocupar o espaço do outono, do inverno e da primavera, a deixar rastros estranhos, como os visitantes misteriosos de Piquenique na estrada, dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky. E a distância entre ricos e pobres ficou mais clara. As fragilidades sociais do país apareceram mais fortes. Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores tradicionais, favelados, trabalhadores informais, desempregados, microempresários, população carcerária... De repente, havia os que deviam se isolar e os que não podiam.

Janeiro de 2020 nos parece mais distante do que jamais esteve. Outra vida, outro mundo. A rápida transição entre realidades, em meados de março, desdobraria-se em consequências e transformações longas, difíceis de imaginar. A crisálida segue imóvel, como se não houvesse vida ali (algo se desenvolve). As pequenas certezas, os marcos mais à frente, visíveis algumas rochas adiante na escalada, prenunciam uma vida mais difícil: no macro, um mundo incerto e empobrecido, sujeito a uma extrema direita enfraquecida, porém, feroz; e, no micro, espíritos remodelados, muitas vezes quebrados, cingidos apenas pela esperança, e famílias atropeladas, borradas pela tempestade pandêmica, com entes queridos transformados em memórias tão remotas quanto o já difícil 2019.

Não há caminho que não seja o do tempo, e o tempo não se importa. Ele avança rumo à pradaria tranquila ou ao abismo, à claridade ou à escuridão, sempre alternando a paisagem com os pistões dos segundos a trabalhar constantes, formando horas, meses. Outras pestes ficaram para trás. No romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, o bon vivant Tomas persegue Tereza, sem compreender como pode ela ser o amor de sua vida. Segue surpreso por rascunhar os dias página a página, pois a realidade não permite preparação. Nunca é obra completa. Os dois acabam arrastados pela gravidade do comunismo, que desaba sobre a República Tcheca. E o cirurgião habilidoso perde tudo, como muitos perderam nos últimos meses.

“Es muss sein”, repete Tomas enquanto deixa a Suíça em busca de Teresa. Do alemão, “tem que ser”. A frase é parte do Quarteto de Cordas Número 16, de Beethoven. A canção se repete na mente do protagonista, que vê a paisagem mudar enquanto mergulha de carro nas ruas de Praga do regime soviético. “Tem que ser”, cantarola. E, em algum momento, tolhido pelo comunismo por todos os lados, e não por vontade própria, o cirurgião deixaria tudo o que foi para trás. Inclusive o ofício de médico. Mas, então, esmagado pela União Soviética, envelhecido, cercado de agricultores, lançando mão dos dedos habilidosos para consertar um velho caminhão, ainda ao lado de Teresa, o protagonista, finalmente, seria feliz.

Nesse mundo, fora das páginas de livros ou de jornais, os caminhos retorcidos da vida lembram a Praga de Milan Kundera. Es muss sein. Tem que ser. A estação da pandemia nos deixará. Tolhidos. Muitas vezes, arrasados. Cingidos pela esperança. E, se o tempo avança impiedoso, a vida constrói caminhos. Não é possível prometer nada, pois não estamos no controle. Nunca estivemos, como não estava Tomas. Mas é possível seguir em frente. Kundera se inspira na ideia de eterno retorno de Nietzsche e na possibilidade de amar o destino. Logo, podemos amar. E a alegria virá. Es muss sein.