Sentimentos de alívio, gratidão e esperança para a família da pequena Kyara Lis. Nesta quinta-feira (19/11), a bebê brasiliense, de 1 ano e três meses, diagnosticada com atrofia muscular espinhal (AME), recebe a aplicação do remédio Zolgensma, que custa cerca de R$ 12 milhões, no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR). Desde junho deste ano, a família dela lutava contra o tempo para que a menina tomasse o medicamento, considerado o mais caro do mundo e o único capaz de impedir o avanço da doença.
Ao Correio, os pais informaram que o remédio chegou ontem e a aplicação começará por volta das 13h. "A aplicação deve durar cerca de uma hora. Ficaremos no hospital até o final da tarde", contou o pai, Ovídio Rocha. "Demos entrada no hospital às 9h. Nem dormimos nesta noite. Estávamos ansiosos para chegar aqui logo. Estamos imensamente felizes. Não está dando nem para processar direito o que está acontecendo".
A família da criança desembarcou de jatinho na capital paranaense no primeiro sábado do mês (7/11), contando com a ajuda de um grupo de empresários no transporte. Com 10 meses de idade, a bebê foi diagnosticada pela equipe de médicos do Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília.
Em 21 de outubro, a família da Kyara recebeu a complementação de R$ 6.659.018,86 para importar o medicamento. O depósito foi feito pelo Ministério da Saúde duas semanas após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definir que a pasta complementasse a diferença para a compra do Zolgensma. Por meio de doações e rifas, os familiares da criança conseguiram arrecadar os primeiros R$ 5,3 milhões.
Doença rara
Genética e rara, a atrofia muscular espinhal (AME) é uma doença neuromuscular, grave, degenerativa e irreversível, que interfere na capacidade do corpo de produzir uma proteína considerada essencial para a sobrevivência dos neurônios motores (SRM), responsáveis por movimentos voluntários como respirar, engolir e se mover.
Quando a ação da Kyara foi protocolada, ainda não havia a aprovação do medicamento pela Anvisa, conta a advogada da família, Daniela Tamanini. “Para demonstrar que a medicação era segura e eficaz, houve a necessidade de fazer um trabalho de busca de informações no exterior. O Zolgensma é uma medicação nova, que ainda precisa ser incorporada à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Isso precisa ser feito com máxima urgência”, ressaltou.
De acordo com ela, os gestores têm muito medo de responder a processos quando liberam medicamentos fora da Rename. “A burocracia é uma marca brasileira. A legislação precisa ser atualizada e prever mecanismos que dêem mais margem de atuação para os gestores em situações excepcionais. Em todos os processos de saúde, não apenas no processo da Kyara, enfrentar o tempo é muito difícil. A doença, a saúde e a vida não esperam o tempo da justiça e da burocracia. O processo da Kyara foi extremamente rápido, mas demandou três meses. É pouco tempo para Justiça, mas muito tempo para quem tem pressa, para quem tem AME”, ressaltou Daniela Tamanini.
Segundo a advogada, para que todas as crianças com AME tenham acesso ao medicamento, é preciso ampliar o teste do pezinho para conseguir o diagnóstico precoce. “É preciso vontade política do poder Executivo para negociar com o laboratório e conseguir reduzir o preço da medicação. A vitória da Kyara configura um precedente importantíssimo. É a primeira e única, até agora, decisão de um Tribunal Superior. Certamente, a decisão servirá de guia para todos os juízes brasileiros”, avalia, reforçando que a decisão sinaliza ao Ministério da Saúde a obrigatoriedade do fornecimento da medicação. "A sociedade precisa se mobilizar em prol do SUS, exigir o seu fortalecimento e aprimoramento. O SUS, bem administrado, é um instrumento de promoção da dignidade humana”.
No Brasil, de acordo com dados do Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname), até 1º de outubro de 2020, foram registrados 1.178 casos de AME, sendo 35% do tipo 1, 34% do tipo 2 e 25% do tipo 3. Segundo o Iname, a distribuição demográfica da população AME indica 21 casos no Distrito Federal até a mesma data. Atualmente, outras duas crianças do DF também buscam o buscam remédio de R$ 12 milhões: Gabriel Alves Montalvão, de sete meses, e Helena Gabrielle, de nove meses.
Músicos Juntos pela Kyara
Com o objetivo de ajudar a família da Kyara Lis a arrecadar o valor do remédio, professores da Escola de Música de Brasília (EMB) e músicos de todo o país participaram da ação “Músicos Juntos pela Kyara”, ao sensibilizar as pessoas nas redes sociais. "Recebi com extrema alegria a notícia de que a Kyara havia conseguido o remédio de que tanto precisava", ressaltou o cantor Alysson Takaki, professor da EMB. "Muitas pessoas fizeram parte da campanha. Tudo isso mostrou o quanto podemos ser fortes se nos unirmos em prol de uma causa nobre. Não poderia deixar de colocar o meu dom, a minha voz, para cantar para Kyara. Sigo torcendo, cantando e rezando por sua melhora e pra que ela continue espalhando esperança e alegria", acrescentou o cantor.
A família da Matta, de Apucarana (PR), também compôs e produziu uma canção intitulada “Brilha, Kyara, Brilha” para ajudar na campanha. “Ficamos sabendo por uma amiga de Brasília e acabamos nos sensibilizando com a história. Nos colocamos no lugar da família na luta pela cura e a corrida contra o tempo. Somos uma família de músicos e acreditamos no poder que a música tem de despertar a emoção e também uma forma de transmitir o nosso sentimento através de uma melodia singela e uma letra que mostrasse o que a Kyara é, uma criança com um brilho singular nos olhos. Saber que fizemos parte da história dela nos faz mais otimistas nas vitórias de tantas outras crianças que precisam desse medicamento”, disse a cantora e compositora Cristiane da Matta.
Diversas personalidades do país se engajaram na causa, como Anderson Silva, Whindersson Nunes, Glória Pires, Orlando Morais, Jota Quest, Gian & Giovani, Oswaldo Montenegro, Fernando Anitelli (O Teatro Mágico), Saulo Vasconcelos, dublador da voz do personagem Maui da animação Moana, da Disney, entre outros. Além das doações, a mobilização do público contou ainda outdoors colocados nas ruas do DF, carreatas, rifas e bazares. Por meio da sensibilidade nos traços, a jovem Yasmim da Matta, 16 anos, de Apucarana (PR), fez ainda um desenho do retrato da Kyara para ajudar na campanha da bebê.
Por que o remédio custa tão caro?
O grande diferencial do Zolgensma (onasemnogene abeparvovec) é que o tratamento age na causa raiz genética da AME, fornecendo uma cópia funcional do gene SMN1 com uma única infusão intravenosa, modificando a história natural da doença. A tecnologia atua fornecendo o gene saudável no paciente, visando à correção da mutação causadora de doenças presentes no DNA. O registro do Zolgensma foi aprovado pela Anvisa em 17 de agosto de 2020.
O preço reflete décadas de pesquisas científicas, investimentos em cadeia logística e manufatura em larga escala, além de custos diretos e indiretos com capacitação de centros de referência, hospitais e profissionais de saúde. Hoje, existem no mercado moléculas de tratamento contínuo, mas o diferencial é que o Zolgensma é de aplicação única. A dose do Zolgensma é baseada no peso do paciente.
Todo o processo de importação é acompanhado de perto, tanto pela empresa transportadora quanto pela Novartis, e o produto é acompanhado por um dispositivo específico para monitorar a temperatura interna do contêiner. O Zolgensma será transportado congelado, a uma temperatura de -60°C e, ao ser recebido no hospital de aplicação, o produto deverá ser mantido refrigerado entre 2 e 8°C. A temperatura também é monitorada durante todo o transporte por meio do uso de um dispositivo específico.
Veja o vídeo gravado pela família: