Dentro das variedades existentes na comunidade e culturas surdas, a poesia aparece em Brasília para trazer reflexões e mudanças. No mês de novembro, o Festival Arte Como Respiro — edição de poesia surda, apresenta os versos de Thaís Lobeu e Rafael Caldeira, ao lado de Adriana Marcondes Marques e Karen Marques Calasancio. Por meio da escrita e da linguagem brasileira de sinais, conhecida como Libras, eles se expressam sobre o momento vivido de pandemia e pedem por mais acessibilidade na cidade.
“Queria mostrar o que é realmente importante para as pessoas e relacionar isso com a arte, para que a poesia pudesse fazer uma mudança de vida e transformação”, destaca Rafael Caldeira, grafiteiro e poeta, conhecido como Odrus (surdo de trás para frente). Ele diz que no início da quarentena se sentia triste, deprimido, mas procurou entender o que era essencial para a vida das pessoas, e assim relacioná-las com a escrita. “Tinha que descobrir uma maneira de mostrar a minha arte e fazer com que minha autoestima se elevasse, mostrando algo positivo”, complementa.
Thaís Lobeu, poetisa e compositora, apaixonada por músicas internacionais e Legião Urbana, conta que o momento causado pela covid-19 trouxe reflexões e inspirações para escrever. “Eu juntei tudo que estava vivendo, desde quando começou a pandemia, me inspirei nas coisas que estavam acontecendo com as pessoas, que estavam com problema de solidão e também fiz uma música relacionada a isso.”
Apaixonada por Brasília, Thaís deseja que a poesia sobre os desafios enfrentados atualmente alcance a população da capital e, também, do país. “Eu amo muito Brasília. Nasci aqui com a cultura, com as pessoas e não teria coragem de mudar para outras cidades. A minha missão é oferecer, por meio de Libras, a minha poesia para falar sobre as dificuldades que o mundo está passando hoje”, afirma. “Transformar isso em Libras e em arte, para que possa transformar esse 2020 para as pessoas”, acrescenta Odrus.
Como uma forma de divulgar a arte e para auxiliar os artistas impactados pela covid-19, o Festival Arte como Respiro é uma iniciativa do Itaú Cultural, que ocorre pela primeira vez em plataforma on-line e com espaço para a poesia surda. “A ideia surgiu na urgência e emergência da gente atuar e poder, de alguma forma, continuar nossos trabalhos a distância”, pontua Thayná Menezes, coordenadora do núcleo de Educação e Relacionamento do Itaú Cultural, sobre a edição virtual.
Dentro da programação audiovisual, cênica e musical, a poesia surda ocupa os sábados entre 14 de novembro e 20 de dezembro, às 17h, com blocos temáticos em cada um. Com as poesias interpretadas em Libras ou em Visual Vernacular (Libras 3D), recurso artístico da linguagem de sinais, os vídeos ficarão disponíveis no site do Itaú Cultural até 15 dias depois da postagem. Thaís apresenta a poesia Respire e Rafael, Humanidade em observação, no primeiro fim de semana, com a temática coronavírus. Empoderamento negro e surdo, resistência, território, natureza e cotidiano são outros assuntos dos blocos.
Embora a edição virtual possibilite o acesso das pessoas do Brasil inteiro, a presença física é diferente, principalmente, quando o assunto é arte. “Ver por vídeos é ótimo, neste sentido, mas o presencial carrega uma emoção muito mais forte”, explica Odrus. “É tudo diferente, porque quando você vive um festival desses presencialmente, vive, também, as experiências ao vivo”, completa Thaís.
Acessibilidade
As poesias em Libras, no festival do Itaú Cultural (itaucultural.org.br), possuem tradução escrita em português, uma vez que grande parte da população não conhece a linguagem de sinais, mesmo dentro da comunidade surda. É importante destacar que Libras não é obrigatório no país, fato que faz com que as legendas também sejam elementos para maior acessibilidade.
Pensar essas questões gera maior acesso aos conteúdos e diminui a fronteira entre as culturas surdas e a de ouvintes. “É também sobre a importância do público surdo poder escolher a programação que quer assistir porque gosta, e não porque é a única acessível”, exemplifica Thayná Menezes, ao enfatizar a importância da presença de intérpretes nas programações.
Na pandemia, o modelo de lives no Instagram e no YouTube popularizou-se com a tradução simultânea de intérpretes de Libras. Entretanto, a área do entretenimento não é a única que deve se preocupar com isso. Thaís, que é oralizada, embora não escute, compartilha dificuldades cotidianas enfrentadas em lugares básicos. “Vou ao hospital, o médico está usando máscara e eu não entendo nada. As vezes, ele perde até a paciência.”
“Neste período cresceu demais (a interpretação em Libras), mas ainda falta muito”, afirma Odrus, no mesmo sentido de Thaís. O grafiteiro, que já foi convidado para eventos nos Estados Unidos, África do Sul, Canadá e França, diz que gostaria que tivesse mais intérpretes na parte do grafite, como também no rap, apesar da dificuldade pela rapidez das canções. “Eu sonho com isso”, revela.
*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira