Regime penitenciário

Pretos e pardos representam 83% dos presos no complexo da Papuda

Cadeias do Distrito Federal têm 83,8% de presos de cor preta e parda, número acima da proporção de negros na população geral do DF. Especialistas alertam para necessidade de reflexão sobre encarceramento em massa e seletividade penal

As grades das prisões encarceram vidas daqueles que são observados, principalmente, pela ótica criminal, e quase nunca pela visão humanista. Quando se observa quem são essas pessoas, a população negra acaba sendo a maior encarcerada. No Distrito Federal, 11.794 pretos e pardos estão presos, o que correspondem a 83,8% da população carcerária, com dados de raça informados ao Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Departamento Penitenciário (Depen), de junho deste ano. O número é significamente mais elevado do que a proporção de negros na população total do DF, de 57,6%. Eis mais um motivo para reflexão no mês da Consciência Negra.


As estatísticas mostram que é essa parte da população que está mais suscetível ao regime prisional quando comete crimes, que mais encara a realidade da lotação dos presídios e que mais tem dificuldade de se reinserir após a concessão da liberdade. Para especialistas, o problema histórico escancara o racismo estrutural. Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, avalia que há explicações históricas para entender os motivos que levam o povo negro a se tornar parte substancial da massa de presos. “Temos que ir desde o período da escravidão, lembrar da ausência de políticas públicas para integração na sociedade e do uso da legislação penal, desde os primeiros códigos penais, voltado para a criminalização da população negra”, diz.


Ele cita que é fundamental observar um mecanismo chamado na criminologia de seletividade penal, que coloca, em síntese, que nem todo ato tipificado em lei acaba com o indivíduo sendo criminalizado. “A seletividade alcança essa população negra. Se observamos crimes contra a previdência ou empregadores que burlam o pagamento de fundo de garantia, casos de condutas de proporção até maior do que um furto, por exemplo, o tratamento do Estado não é voltado para criminalização, pois trata principalmente de pessoas brancas”, detalha.


Esse cenário, na visão de Gabriel, deve ser mudado desde bem antes do processo de julgamento. “Vemos hoje seletividade nos procedimentos de abordagem policial, com uma repressão voltada mais fortemente para pessoas negras”, afirma. O especialista cita que um dos exemplos claros de como o crime é combatido de forma mais prejudicial para pretos e pardos está nos casos de tráfico de drogas. “É aí que fica mais nítido. Nesse combate, não se busca a cadeia do tráfico. Os alvos são aqueles usuários ou quem exerce as tarefas mais simples do mercado de drogas. Muitas vezes, não se chega no setor financeiro que organiza o crime, porque esse é composto das camadas econômicas mais elevadas”, pontua.


Os caminhos para enfrentar essa problemática não são fórmulas exatas ou compostos apenas por uma frente, mas passam pela necessidade de refletir sobre o encarceramento. Gabriel diz que é preciso uma mudança na política criminal, pois, atualmente, “é impossível imaginar que a prisão seja capaz de promover os fins a que ela se propõe”.


“Temos que pensar modelos alternativos à prisão, que acaba sendo regra para pessoas negras e vulneráveis. Há um conjunto de crimes sem violência que tem a resposta da prisão, que é inadequada. Ela deve ser reservada aos crimes que causam lesão efetiva à sociedade, em especial os que envolvem violência e perigo social a partir dela. O país, quando seleciona manter pessoas presas, acaba fazendo uma escolha que tem por trás o componente racial”, observa. Outra necessidade de enfrentamento citada pelo especialista é a garantia dos direitos básicos dentro das cadeias, enquanto os indivíduos cumprem a pena.

“Os índices de prisionalização são enormes. Somos o terceiro país com mais pessoas presas. Um fator muito importante na reflexão é o estado de coisas inconstitucionais das prisões. Elas produzem violações sistemáticas de direitos, não têm capacidade de promover a integração social da pessoa presa. Atualmente, somente um em cada quatro presos tem acesso à educação e trabalho, elementos garantidos pela legislação”, lembra.

Preso injustamente

“A vida do negro que mora na periferia não é fácil”, declara Lucas Moreira de Souza, 26 anos. Em 2017, o jovem soltava pipa em frente à casa da tia, em Ceilândia, quando foi surpreendido por policiais e acusado de ser autor de assaltos e uma tentativa de latrocínio. Levado à delegacia, Lucas chegou a ser apontado por algumas vítimas como o responsável pelos delitos. Ele ficou detido por três anos, mesmo com informações de que o verdadeiro autor dos crimes era manco, característica que ele não tem, e com o fato de que o carro utilizado nos roubos foi novamente usado em outras ocorrências, quando ele já estava detido. Para Lucas, o que aconteceu com ele não é raro. “O racismo existe no Brasil como um todo. Muitas vítimas do sistema vão parar na prisão, pessoas de periferias, negras, carentes, de classe baixa. E, muitas vezes, por crimes que não cometeram, como aconteceu comigo”.


O jovem diz que o problema começa já na abordagem policial. “A gente é julgado pela cor e pela roupa que está vestindo. Eu moro em Ceilândia e vejo que todo mundo de lá parece ser visto como suspeito”, avalia. Até mesmo após conseguir provar a inocência e sair da prisão, Lucas chegou a ser novamente abordado por policiais, na mesma cidade. Ele conta que estava andando perto do local em que foi detido e acabou parado, sem motivo, mas liberado depois de apresentar documentos. Solto desde 21 de outubro, Lucas agora procura uma oportunidade de trabalho fixo e conta com a ajuda de uma vaquinha virtual, criada para ajudar a família.

Estado

A Secretaria de Administração Penitenciária (Seape) informou ao Correio que “no tocante à execução penal, ao condenado e ao internado são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Ou seja, todos os direitos inerentes à pessoa presa são preservados, com exceção daqueles restringidos pelo Poder Judiciário”. A pasta também detalhou que “não há qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política no sistema penitenciário do DF. Todas as condições são asseguradas para a integração social e harmoniosa das pessoas privadas de liberdade”. A nota da Seape diz, também, que todo novo reeducando recebe atendimento de equipe multidisciplinar, formada por profissionais de saúde.


Sobre a lotação dos presídios, a pasta informou que há planejamento para aumentar o número de vagas. “Atualmente, dois novos blocos, recém-inaugurados, do Centro de Detenção Provisória II (CDP II) possuem 400 vagas disponíveis. Foram construídos quatro novos Centros de Detenção Provisória (CDP’s). Após a inauguração das novas unidades, prevista para o final deste ano, serão disponibilizadas 3,2 mil novas vagas.

 

Três perguntas para

Werner Rech, Defensor Público do Distrito Federal


1. Como podemos detalhar a atuação da Defensoria Pública do DF em relação ao sistema prisional da capital?

Temos aproximadamente 240 defensores no DF, sendo que 17 são exclusivos da parte de execução penal e 50 estão atuando no andamento dos processos. Pouco menos da metade da força de trabalho está voltada a essa atuação, porque temos muito encarceramento no DF. Nossa atuação tem um diálogo grande com os familiares que procuram o Núcleo de Execução Penal para buscar ou trazer um tipo de informação. Eles acabam verificando alguma necessidade do preso, às vezes com alimentação, com algum tratamento específico. E há também uma parte automática, que não é pedido de alguém, mas que a Defensoria atua de ofício, que é na questão de progressões, análise de pena. É uma parte técnica que fazemos sem que os familiares nos procurem. Nessa pandemia, também tomamos medidas emergenciais, ajuizando habeas corpus coletivo de progressão antecipada, por exemplo, de pessoas com bom comportamento. Antecipamos o momento em que elas iriam para regime domiciliar para que o sistema prisional do DF tivesse um alívio.


2. E como a Defensoria observa o encarceramento maior de pessoas negras?

Quando olhamos o produto final do sistema judicial, criminal, estamos vendo o resultado, que mostra mais negros do que brancos presos. A proporcionalidade da população negra em geral, por si só, não é uma explicação plausível, porque falamos de índices maiores que a população negra. A Defensoria Pública atua muitas vezes em processo de origem, para saber se o tipo de averiguação feita para chegar à conduta criminal é ou não dotada de preconceito racial pelas autoridades. Fazemos essa análise individualizada em cada processo. Uma dificuldade que temos é mostrar isso em um processo judicial, porque, embora a gente analise uma tendência, o policial não vai dizer no processo que fez aquela abordagem porque o indivíduo era negro. Esse tipo de relatório não se tem. O que dou como opinião pessoal é que, a partir do momento em que uma pessoa é levada presa, ela está encaminhada para uma condenação. No momento de formar a culpa da pessoa, tudo fica muito pendente para uma condenação. Não temos uma investigação defensiva, o Estado não tem a vontade de demonstrar uma contraprova. É um funil. A polícia captando e o judiciário processando para a sentença no final. É um problema complexo, porque são várias engrenagens para se identificar.


3. Há hoje mecanismos possíveis para combater o encarceramento em massa e a superlotação dos presídios?

É nítida que há uma tendência de encarceramento que gera a superpopulação que temos hoje. No DF, a população encarcerada é três vezes maior do que o número de vagas nos presídios. E em muitas prisões poderiam ser aplicados medidas alternativas, como o monitoramento eletrônico, por exemplo. Isso é grave porque o sistema carcerário é perverso, qualifica mais para o crime, e não queremos nem isso, nem a impunidade. Temos casos de países europeus que solucionaram a crise carcerária buscando entender porque a pessoa está cometendo o crime e dando a ela ferramentas de escolha, de igualdade no momento em que ela vai ou não cometer uma conduta criminosa. Não podemos esperar que uma pessoa que sai do presídio e não consegue emprego que ela deixe de cometer um crime buscando uma vida melhor do que aquele momento. Às vezes o trabalho tem remuneração baixa, ou o indivíduo não tem qualificação, então se cria algo estrutural. Notamos que quando sobe o desemprego, sobe também a criminalidade. Não há vagas de trabalho intramuros ou extramuros suficiente para o número de pessoas que querem trabalhar. Isso também é uma barreira de ressocialização, pois a pessoa passa anos presa e fica desatualizada. Quando volta às ruas, não consegue emprego e volta a praticar crimes. Isso não é desculpa para nenhum tipo de delito, mas é algo que precisa ser pensado.

 

 

(Colaborou Darcianne Diogo)

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