“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda.” A frase do célebre educador Paulo Freire sempre é lembrada pela professora Maria Madalena Tôrres. Moradora de Ceilândia, ela trabalha, há mais de 30 anos, para melhorar a vida da população da maior cidade do Distrito Federal por meio do ensino.
Negra, 57 anos, natural de Divinópolis (GO), Maria Madalena chegou a Brasília aos oito anos, em 1971, tornando-se pioneira de Ceilândia, junto com os pais e os, até então, quatro irmãos. Outros três nasceram brasilienses. A chegada à capital foi cheia de percalços. Mais velha das crianças, Madalena era encarregada de cuidar dos irmãos menores enquanto seus pais iam trabalhar — o pai no ramo da construção e a mãe, com jardinagem na Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap).
Madalena também ficava encarregada de buscar água com o irmão mais novo, Maurismar. Na época, a cidade não tinha água encanada. “A nossa primeira luta foi pela água. A gente ia buscar no carro-pipa. Todo mundo enchia primeiro, ninguém respeitava criança, e a gente sofria demais. Mas, tinha sempre um senhor na quadra onde a gente morava que nos ajudava a encher as nossas latas, e a gente olhava pra ele como se ele fosse um deus”, relembra a pioneira.
Mais velha, Madalena empreendeu diversas outras batalhas em busca de uma vida mais justa para ela e, principalmente, para o coletivo, como faz questão de pontuar. “Fazendo com o coletivo, a liberdade acontece, a emancipação acontece. Essa é a grande questão quando trabalhamos na educação. Trabalhando uma educação libertadora, vamos libertar toda a questão de racismo, homofobia, gênero e classe social”, argumenta.
Trajetória
Envolvida desde pequena na Igreja Católica — ela chegou a fazer parte de um convento na juventude, entre 1984 e 1986 —, foi lá que Madalena entrou em contato com o método Paulo Freire de educação, uma proposta de alfabetização de adultos a qual ela dedicou a sua vida. A professora começou a trabalhar como alfabetizadora na Paróquia Nossa Senhora da Glória, em Ceilândia Sul. A iniciativa expandiu-se e, em 1989, ao lado de outros voluntários, fundou o Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (Cepafre), onde foi a primeira presidente.
A instituição alfabetiza jovens e adultos e é uma porta de entrada de muitos para a Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Desde o início, os organizadores estimam que ensinaram mais de 17 mil moradores de Ceilândia a ler e escrever. O perfil dos participantes é de pessoas com mais de 50 anos, em grande parte mulheres, negras e nordestinas.
“Eu a vejo como uma pedra fundamental. A atuação dela move muitos coletivos e vale a pena reconhecer essa pessoa que reúne, agrega. Eu a considero uma pessoa evoluída, por conta de toda essa história que vivenciou e nos ajuda a vivenciar. A gente escuta Madalena, a gente se apaixona. Desperta uma consciência política muito grande”, define a atual presidente da Cepafre, Danielle Estrela Xavier.
Esta habilidade mencionada por Danielle fez com que Madalena se formasse em Filosofia, pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e, posteriormente, fizesse pós-graduação e mestrado na Universidade de Brasília (UnB). Pouco tempo depois de ingressar no ensino superior, passou em um concurso público para a Secretaria de Educação. Até fixar a carreira na educação, no entanto, Madalena trabalhou com um pouco de tudo: foi monitora de uma creche, empregada doméstica e vendedora em loja de sapatos, na W3 Sul — o primeiro emprego de carteira assinada.
Madalena aposentou-se em 2008 devido a um câncer de mama cujo tratamento deixou sequelas. “Fiquei quase três anos em tratamento e, durante o processo de quimioterapia, tive muitas dores nos ossos, e essas dores estão comigo até hoje”, revela a professora.
Mesmo aposentada, Madalena continua ministrando aulas no Cepafre e na Paróquia Nossa Senhora da Glória para membros da comunidade e participantes da catequese. Além disso, ela está envolvida em movimentos sociais, como o Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor (Mopocem), que luta por mais diretos à população e conseguiu que fosse construído um campus da UnB na região.
Homenagem
Em março do ano passado, Maria Madalena Tôrres recebeu o título de Cidadã Honorária de Brasília, em reconhecimento da trajetória na educação popular e da importância do trabalho na alfabetização de jovens e adultos do DF. A homenagem foi concedida por iniciativa do deputado distrital Chico Vigilante (PT). Um dos projetos desenvolvidos pela educadora no Cepafre foi o Cine popular: conhecimento e audiovisual. A iniciativa deu origem ao tema do mestrado de Maria Madalena na UnB.
Em 2018, ela lançou o livro O cinema como linguagem na alfabetização de jovens e adultos trabalhadores, baseado na sua dissertação de mestrado. Além disso, organizou, junto com Danielle Estrela e Gilberto Ribeiro do Nascimento, o caderno Alfabetizar é libertar, dedicado à alfabetização. Outros dois livros, por outro lado, retratam a professora: Mulheres inspiradoras, organizado por Gina Vieira Pontes e Vitória Régia de Oliveira Pires; e Memórias do Distrito Federal, a luta pela autonomia política, editado pelo jornalista Luiz Egypto de Cerqueira.
A professora Laura Maria Coutinho, que orientou Madalena no mestrado, só tem elogios à amiga. Elas conheceram-se no final dos anos 1980, em Ceilândia, quando Laura desenvolvia sua pesquisa sobre o uso da linguagem audiovisual na alfabetização de adultos, pelo método Paulo Freire, com colegas do Mestrado em Educação da UnB.
“A vida dela é dedicada à comunidade de Ceilândia. Mesmo as atividades acadêmicas, especialização, mestrado, sempre foram com o compromisso com o trabalho junto ao povo de Ceilândia”, descreve Laura.
O trabalho teórico de Paulo Freire permeou toda a trajetória profissional de Madalena e forneceu-lhe a pedagogia pela qual compartilharia o seu conhecimento. Ela chegou a encontrá-lo em algumas ocasiões. O último ocorreu cerca de um ano antes da morte do educador, em 1997. Mas, há um outro elemento fundamental na atuação de Madalena que fica evidente ao escutá-la falar e ouvir relatos de outros sobre a professora: amor.
A professora conta que, quando trabalhava como monitora em uma creche, ao cantar e tocar o violão para as crianças, elas adormeceram, e Madalena também pegou no sono. O padre que coordenava a unidade entrou na sala e ficou surpreso com a situação: as crianças estavam quietinhas, pedindo o silêncio dele para não acordar a educadora. “Eles te obedecem até dormindo”, comentou o religioso sobre o ocorrido, ao que Madalena respondeu: “Não é obediência, é amor”.
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