CULTURA

Projeto amplia oportunidades e reflexões sobre a cultura negra

Espaço Cultural Serra da Barriga resgata memórias quilombolas para proposta de criação de ponto de encontro que possa acolher negros do Distrito Federal

Alan Rios
postado em 07/11/2020 07:00 / atualizado em 07/11/2020 14:25
 (crédito:  Ana Rayssa/CB/D.A Press)
(crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

Um local de acolhimento, cultura, educação e autoconhecimento do eu como pessoa negra. Essas são as propostas principais de um projeto que nasce em Taguatinga para ampliar oportunidades e reflexões na periferia. O Espaço Cultural Serra da Barriga é fruto de ideias antigas de jovens ativistas do Distrito Federal, que atuam em diferentes áreas e sentem a urgência de levar para um lugar acessível, um projeto rico em conteúdo e colaboração. Na prática, o grupo começou a criar uma biblioteca afro-referenciada, composta por livros escritos por pessoas negras e com temática afrodescendente, planejando atividades como aulas, exposições, cinema comunitário, workshops e cursos profissionalizantes.

"Sentimos ausência de espaços que sejam nossos, em que a gente consiga conversar na nossa linguagem, com nossos iguais, e coloque em prática nossas ideias. A gente decidiu tirar isso do papel e colocar na rua. O DF já tem uma carência de locais culturais, principalmente nas periferias. Quando fazemos um recorte racial, vemos que não existe nada mesmo", explica o ativista Mateus Santana, 29 anos. Ele e mais dois amigos, uma comunicóloga e um professor, começaram pensando na construção da biblioteca e resolveram ampliar a ideia, a cada passo incluindo mais voluntários e propostas, com os financiamentos que vão surgindo. "Fizemos uma vaquinha on-line para adquirir recursos para o espaço físico e o resto vem tudo de parcerias. Comunidade se envolvendo, galera ajudando no dia a dia. Eu toco um projeto literário que é o Bienal da Quebrada, os livros viriam dessa ação, que tem parceria com editoras e pessoas influentes da cultura", diz Mateus.

Quilombos

O nome do espaço cultural faz referência a um dos maiores quilombos que existiu no país. "O povo do Quilombo dos Palmares tinha uma grande estratégia de resistência. Era um povo independente, que não dependia em nada da sociedade que tentava escravizá-los, e também era um espaço de acolhimento. Isso representa muito o que queremos", pontua Mateus.

Joceline Gomes, 32, conheceu a Serra da Barriga (leia Palavra da especialista) e explicou como aquele local transmite a ideia do projeto. "Eu e Mateus trabalhamos na Fundação Cultural Palmares e tivemos a oportunidade de ir até lá e fazer uma cobertura diretamente da terra em que pisaram Zumbi, Dandara. É uma experiência muito transformadora estar na terra que foi um estado preto, autocentrado, autodeterminado. Para nós, é uma referência muito importante, porque é possível fazer um espaço que possamos governar sem passar pela opressão. Para o povo africano, poder não é opressão", afirma a comunicóloga.

A proposta do grupo de brasilienses também busca criar um lugar que possa contribuir para diminuição das lacunas sociais da população negra. "Saiu uma pesquisa recente dizendo que essa geração que passou pela covid-19 vai ser ainda mais desigual do que a anterior, porque muita gente não tem computador em casa, não tem internet, perdeu o ano escolar inteiro. Então, queremos montar uma sala multiuso, telecentro e essas coisas. A gente sempre teve esse projeto de fazer algo pela nossa comunidade, que não é só o lugar em que a gente mora, estamos falando de pessoas com a mesma origem que a gente. Pretas, periféricas. A gente sabe como foi o rala para chegar onde chegamos hoje, então, queremos encurtar esse caminho. As próximas gerações não precisam passar pelo perrengue que a gente passou. Queremos esse espaço que dê oportunidades", coloca Joceline.

Conhecimento

Outro ponto importante da iniciativa é propiciar reflexões sobre ser uma pessoa negra. Joceline lembra que passou pela universidade sem se reconhecer como mulher negra, e que isso a privou de identificações e descobertas sobre si e sobre a comunidade que a cerca. "A gente quer proporcionar um lugar para crianças e adolescentes, principalmente, para que eles possam se identificar e ter outras referências do que é ser uma pessoa negra e periférica, que isso não significa que ela está fadada ao fracasso. As pessoas brancas e de bairros nobres têm acesso a oportunidades que nós não temos. Nos faltam espaços em que a gente tenha referências positivas para nós. A televisão já mostrou que não é esse lugar. A biblioteca vai ser esse espaço, os professores e pessoas envolvidas no projeto têm esse nível de consciência e querem esse impacto positivo para as próximas gerações", conta. O grupo agora está em fase de procura por um lugar físico que possa servir para abrigar o espaço. A preferência dos jovens é uma casa ampla em Taguatinga, em um endereço acessível como o Mercado Sul, onde eles estudam as opções de locais.

Democratização

O Bienal da Quebrada é um projeto nacional com um pouco mais de um ano de existência. Ele tem como foco democratizar o acesso ao conhecimento, à leitura, à literatura nas periferias e favelas do país. Os participantes já arrecadaram e doaram mais de 10 mil livros em todo o país. No Dia das Crianças deste ano, 500 crianças do Rio de Janeiro receberam livros do projeto, na última ação
recente realizada.


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Palavra da especialista

Resistência e organização

"A historiadora Beatriz Nascimento define o quilombo como um movimento de âmbito social e político que representa um marco na história do povo negro e sua capacidade de resistência e organização, se confundindo com a própria história da presença negra no Brasil. Ela afirma que 'dos primeiros quilombos brasileiros, no século 19, sem dúvidas Palmares se sobressai sem similar, a quantidade destes estabelecimentos está diretamente relacionada ao desmembramento deste grande estado, que inaugura uma experiência singular na história do Brasil'.

Há uma historicidade que acompanha os quilombos em sua dinâmica no tempo: podem ser pensados desde o período colonial como 'sistemas sociais alternativos' e, a partir do final do século 19, passam a ser reconhecidos como territórios de resistência contra diversas formas de opressão. O movimento quilombola se estrutura então como uma das formas mais potentes de resistência nos dias de hoje.

Desde muito antes, quilombos se caracterizam por serem lugares de insurgência e luta pela liberdade, representando ameaça constante ao sistema escravista e no pós-abolição. Entretanto, suas origens são diversas e não podem ser associadas somente a 'lugares de fuga', esta é uma caracterização que simplifica a complexidade e singularidade de suas histórias.

Se esta existência guarda uma materialidade — historicamente constituída por 'terras de pretos' que em grande parte são 'terras de mulheres' — há também uma dimensão simbólica e de representações que remetem a Zumbi, Ganga-Zumba e Dandara (como heróis e heroína), Palmares (como lugar) e a própria Serra da Barriga (como paisagem). Flávio Reis lembra que não se trata somente de heróis e mitos, mas da construção de referências que animem processos emancipatórios, lembrando que o enfrentamento colonial é face dos contextos de opressão. Lembrar Palmares e acreditar que podemos 'nos aquilombar', seguindo passos ancestrais é, sobretudo, uma possibilidade de rememorar passados e construir futuros possíveis."

Cristiane Portela é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).

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