entrevista

"Pacientes negros tiveram mais complicações de covid", diz a médica Marcelle Thimoti

Médica relata as dificuldades de acesso à saúde pela população afrodescendente, principalmente em relação à gestação e ao parto

Tainá Seixas
postado em 06/11/2020 06:00
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press                    )
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press )

A médica obstetra e ginecologista Marcelle Domingues Thimoti avaliou a situação do acesso à saúde da população negra no Brasil e, em especial, no Distrito Federal, em entrevista ao CB.Saúde — parceria do Correio com a TV Brasília —, nesta quinta-feira (5/11). Para a médica, a precariedade no atendimento às pessoas negras, reflexo do racismo histórico no Brasil, acarreta no agravamento de doenças que poderiam ser evitadas. O quadro afeta, em especial, mulheres que têm doenças acentuadas durante a gestação e o parto.

O cuidado com a população negra precisa ser aumentado de que forma?
A gente vê que indivíduos negros têm acometimento maior de algumas doenças, como anemia falfciforme. Diabetes melito e hipertensão arterial são mais graves em indivíduos negros, tanto pelas características das pessoas quanto porque, às vezes, o diagnóstico é mais tardio. Com diagnóstico tardio, as pessoas podem ter algum acometimento que torna a doença bem mais grave. A gente tem que ter cuidados diferentes com indivíduos negros.

Há fatores sociais e culturais que deixam a pessoa negra mais vulnerável?
A população negra, em sua maioria, no Brasil, é periférica, em que, historicamente, o acesso ao sistema de saúde é muito restrito. Infelizmente, o SUS (Sistema Único de Saúde) não consegue resolver todos os problemas. Estamos falando de doenças simples, que seriam resolvidas com estratégias de prevenção. Às vezes, a pessoa mal consegue marcar uma consulta, ou não sabe que, chegando no centro de saúde, teria um preservativo, por exemplo, disponível para ela. Hoje, (muitas doenças) estão aumentando porque as pessoas estão deixando de usar o preservativo. O diagnóstico tem sido cada vez mais tardio e, quando tem, muitas vezes a gente não tem a medicação disponível para o tratamento. Aqui, no Brasil, a gente tem que citar as doenças sexualmente transmissíveis. A gente tem maior prevalência da sífilis em paciente negro, homens negros.

A população negra é mais afetada pela covid-19? Ela corre mais risco?
Os pacientes negros tiveram mais complicações de covid e maior mortalidade, tanto pela dificuldade no acesso quanto pelo acesso tardio. E, também, aquela situação de que quando chega em um centro de referência de saúde, está muito grave, já é uma doença avançada. E porque também ela não consegue fazer a prevenção. Muita gente sequer tem acesso a sabonete para fazer sua higiene.

No caso da mulher, você conseguiu perceber alguma diferenciação em relação à covid?
O que a gente viu é que aumentou muito a morbidade e mortalidade entre as mulheres. Morbidade são afecções que vão comprometer a qualidade de vida e a saúde daquela mulher. Aumentou muito o número de morte materna, o número de abortos espontâneos, os óbitos fetais intrauterinos e aumento de parto prematuro. Várias pacientes estavam tranquilas, e a única coisa que a gente conseguiu correlacionar é que eram pacientes que tiveram covid.

Como a senhora avalia a condição da mulher negra no DF, pela sua experiência em hospitais?
Fiz minha formação no Hospital Regional da Ceilândia (HRC) e, ali, é a grande periferia, um hospital que tem média de 600 partos por mês e que tem muita mulher negra. O que a gente vê ali é a dificuldade do acesso e do cuidado com elas, é uma população renegada. Mulheres que trabalham, têm cargas horárias excessivas. A maioria, talvez 80% delas, são mães de família, não tem parceiro para dividir tudo aquilo, e falta saúde em todos os aspectos: saúde psicológica, por exemplo, ela não tem com quem conversar. Acha que a culpa é dela, porque ela tem tantos filhos. Ninguém vai atrás na prevenção, de uma política de planejamento familiar para que ela não tenha tantos filhos, ela tem dificuldade nesse planejamento.

Quais são as diferenças do tratamento, se é que ela existe, do parto da mulher negra e branca?
Historicamente, a mulher negra era a reprodutora na época da escravidão, ela tinha vários filhos. Ela sofria vários abusos sexuais, engravidava para garantir peças ao seu patrão. E essa crença de que a mulher negra aguenta muitos partos, tem uma tolerância maior à dor, ao sofrimento, a gente vê até hoje. Temos vários artigos sobre como a analgesia de parto, por exemplo, é menos oferecida a mulher negra, aplicam-se menos anestesias. A gente tem uma incidência também menor de cirurgias. Hoje, a mulher poderia, em tese, escolher sua via de parto. O que a gente vê no SUS é que a gente não consegue fazer a via de parto escolhida pelas mulheres. As mulheres negras são menos expostas a uma cirurgia cesariana, porque ela pode ficar durante o trabalho de parto com dor, às vezes a dor dela não é considerada.

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