Ter uma vida plena e digna implica na garantia de direitos humanos. Se isso já é difícil para a sociedade em geral, para as mulheres, o abismo é ainda maior, como mostra a terceira reportagem da série Incansáveis — A luta das mulheres por direitos fundamentais. Estudo publicado este ano pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) evidencia as razões que dificultam a entrada delas no mercado de trabalho e o acesso à educação, por exemplo. Intitulado As mulheres do Distrito Federal: desigualdade, inserção no mercado de trabalho e cuidados com a casa e a família, o levantamento mostra não apenas as discrepâncias entre os gêneros, como também as desigualdades entre mulheres.
Moradora do Paranoá, Thaynara Gomes Bispo dos Santos, 25 anos, conhece bem essa realidade. Mãe do Eric Felipe, 7, Evelyn Caroliny, 4, e Enzo, de 4 meses, ela sustenta os filhos como diarista. Com a pandemia, foi dispensada e, agora, vive com menos de R$ 850, entre o auxílio do governo e a pensão de R$ 200 da filha do meio. “Quando aparece serviço de doméstica e falo que tenho três filhos, a pessoa nem me liga de volta. Se a gente é mãe, o que nos faz mais fortes é querer dar tudo de melhor para eles. Devia haver mais oportunidade”, afirma.
Quando consegue uma diária, Thaynara precisa pagar alguém para ficar com os filhos. Dos R$ 150 que recebe, sobram apenas R$ 50. A diferença é para a babá das crianças e a alimentação delas. “Se tivesse creche em tempo integral, também ajudaria. Com a chegada do Enzo, precisei parar o ensino médio, pois não consegui ninguém para ficar com ele e não posso levar para a escola”, lamenta.
O acesso à educação das mulheres mais pobres é menor em relação àquelas do grupo de alta renda. Para se ter uma ideia, entre as jovens de 18 a 24 anos do grupo de alta renda, 91% estão matriculadas no nível superior, enquanto no grupo de baixa renda são apenas 59,6%.
E, independentemente da classe social, as mulheres do DF são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e cuidado com a família. Não bastasse isso, nas regiões administrativas de baixa renda como Fercal, Itapoã, Paranoá, Recanto das Emas, SCIA-Estrutural e Varjão, 51,1% delas são as responsáveis pelo domicílio.
Emprego e creche
A realidade de Thaynara reflete exatamente o que está na recomendação do estudo da Codeplan. A conclusão é de que o Estado precisa ampliar as políticas de promoção ao acesso e permanência no mercado de trabalho. Sobretudo para aquelas que vivem em regiões de baixa renda e são mães de famílias monoparentais. Nestes casos, uma ação central é aumentar a cobertura de creches para as crianças de até 3 anos.
No DF, há cerca de 20 mil crianças de até 3 anos na fila de espera por uma vaga em creche. De acordo com a Secretaria de Educação, todas as crianças a partir dos 4 anos são atendidas pela rede pública de ensino.
Para equacionar a balança entre a oferta e a procura, o Governo do Distrito Federal inaugurou quatro Centros de Educação da Primeira Infância — Lago Norte, Ceilândia e dois em Samambaia —, abrindo quase 700 novas vagas. Outras 15 unidades devem ser licitadas e construídas em diferentes cidades do DF. A creche da Vila Telebrasília já está em fase de licitação.
Outra medida, segundo a Secretaria de Educação, é colocar em prática o Cartão Creche, com o qual os beneficiários receberão crédito no cartão para matricular os filhos em creches credenciadas ao programa.
Gerente de pesquisa da diretoria de estudos e políticas sociais da Codeplan, Julia Pereira ressalta projetos do governo de promoção da igualdade de gênero no mercado de trabalho em parceria com a Secretaria da Mulher. “Evidências internacionais apontam para a capacitação das mulheres para o empreendedorismo. Mas não adianta ser longe das residências, não pode ter horários rígidos, pois elas não têm com quem deixar os filhos. Se a capacitação agrega renda e oferta outros valores, como a questão de gênero e violência doméstica, ela é mais efetiva”, detalha.
Ainda segundo Juliana, os cursos devem abordar a cadeia completa. Se for corte e costura, deve ensinar como ter acesso ao insumo de forma mais rentável, como administrar o negócio e onde vender. Ou seja, é preciso abordar a cadeia produtiva do começo ao fim.
Empreendedorismo
Aos 49 anos, Maria Aragão tem construído uma história de superação. Natural de Parnaíba, interior do Piauí, até os 34 ela não tinha profissão e sua única ocupação eram os cuidados com o pai doente. Quando ele morreu, há cerca de 15 anos, Maria mudou-se para o DF, aconselhada pela irmã, que já vivia aqui. O primeiro emprego, como recepcionista, mal dava para pagar o aluguel da kit, dividida com três amigas.
A virada na vida começou quando uma amiga, dona de salão, a ensinou o ofício de fazer sobrancelhas e disse: “Investe nisso que você vai ter sucesso”. Assim Maria fez. Economizava o que podia para se capacitar em cursos e aprender novas técnicas.
Hoje, é microempreendedora individual, atende em um espaço no Setor Hospitalar Norte, e sonha em poder transformar a vida de outras mulheres. “Estou fazendo as oficinas do projeto Mulheres Hipercriativas. Se eu for selecionada, quero dar cursos para pessoas como eu era, sem profissão, sem renda, sem rumo. Se a pessoa faz a sobrancelha de uma amiga, é R$ 40. Se aprende a fazer micropigmentação, a renda sobe para R$ 450 ou mais”, exemplifica Maria, que agora é especialista em embelezamento do olhar.
Artigo
Feminicídio antinegro: quando a morte é o que nos une
Marjorie Chaves*
Feminicídio antinegro é o termo que revela a face mais perversa da violência contra as mulheres quando essa encontra o racismo: a morte. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 houve um aumento de 7,1% dos casos de feminicídio no país, chegando a 1.326 mulheres mortas. Desse total, 66,6% eram negras, indicador que vem se mantendo há anos. Considerada uma das legislações mais avançadas de enfrentamento da violência de gênero no mundo, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) não tem alcançado as mulheres negras. A Lei de Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), como um instrumento jurídico importante, também não tem sido suficiente para coibir seus assassinatos.
Ao contrário, tanto a violência doméstica quanto as mortes por homicídio de mulheres negras têm aumentado de maneira preocupante, significa que o racismo tem incidido na forma como estas violências atingem as mulheres brasileiras. A interseccionalidade, como ferramenta de análise elaborada por mulheres negras, tem sido fundamental para a compreensão das desigualdades estruturais que atingem a população negra e, principalmente, para analisar a forma como diferentes marcadores sociais são determinantes na conformação da violência contra as mulheres. As ideias aplicadas às mulheres negras, construídas ao longo de séculos de colonização e escravização, criaram imagens negativas sobre seus corpos e são reiteradas na contemporaneidade.
Essas “imagens de controle”, nos termos da socióloga Patricia Hill Collins, autorizam inúmeras violações de direitos humanos, demonstrando a necessidade de análises que transcendam a perspectiva de gênero, a fim de abranger a complexidade das desigualdades. Além disso, o racismo institucional tem sido identificado como entrave no acesso a direitos, incluindo serviços previstos na Lei Maria da Penha, como a formalização de denúncia de agressão e a concessão de medida protetiva. Mulheres negras, marcadas como corpos violáveis, estão à mercê da omissão do Estado. É urgente a mudança desse quadro.
* Doutoranda em Política Social e mestra em História pela Universidade de Brasília (UnB). É coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (PopNegra), vinculado ao Núcleo de Estudos de Saúde Pública (Nesp/Ceam-UnB) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/Ceam-UnB)