Elas não querem privilégios. Querem respeito e direitos iguais. Se nascer mulher no Brasil representa enfrentar diversos obstáculos para alcançar os mais básicos direitos, para as trans, esse desafio é ainda maior. Na segunda da série de reportagens Incansáveis — A luta de mulheres por direitos fundamentais, o Correio mostra os avanços nas políticas públicas voltadas a elas e como o sistema Judiciário tem atuado no reconhecimento da identidade de gênero.
“O preconceito começa, na maioria das vezes, dentro da própria casa, ou seja, no ambiente familiar, e é repassado de geração em geração”, avalia Paula Benett, coordenadora de Proteção e Promoção dos Direitos e Cidadania LGBT da Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus). Mulher trans, ela ressalta que os reflexos da transfobia estão presentes também no ambiente escolar, no mercado de trabalho e, principalmente, nas ruas.
Nos últimos anos, no entanto, várias conquistas passaram a integrar o caminho repleto de obstáculos da comunidade trans. A garantia do uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero no âmbito da administração pública federal; a oferta de cirurgias de redesignação sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS); a autorização, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF) da alteração de nome e gênero no registro civil nos cartórios; e a crimininalização da discriminação contra pessoas LGBTQ+ são algumas delas.
O Distrito Federal é pioneiro, por exemplo, na criação do POP LGBT da Polícia Civil, uma parceria com a Sejus. “É um protocolo que estabelece parâmetros para o atendimento, abordagem e tratamento adequado às pessoas LGBT, válido para todas as delegacias do DF”, explica Paula.
Violência
No Distrito Federal, a Polícia Civil registrou 129 ocorrências envolvendo transexuais e travestis em 2020. No ano anterior, foram 161. A maioria dos casos é de ameaça, injúria, lesão corporal e roubo. Este ano, houve um homicídio. Recentemente, a Casa Abrigo passou a acolhê-las também, e não apenas às mulheres cis gênero.
Uma das medidas para garantir a cidadania das mulheres foi a criação da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin), em 2016. “Ter a Decrin aqui tem uma simbologia, a população (LGBTQ+) se sente mais empoderada. Mesmo assim, o preconceito é muito grande”, afirma a delegada titular da unidade especializada, Ângela Maria dos Santos. “Hoje, o trabalho da Decrin é se aproximar dessa população, para atender de forma humanizada, sem que ela seja revitimizada”, completa.
Um mês após o STF equiparar a homotransfobia ao crime de racismo, em junho de 2019, a Decrin passou a padronizar o atendimento à população LGBTQ+ no DF. “Vemos mulheres trans não sendo colocadas na Lei Maria da Penha, por exemplo, por desconhecimento da pessoa que está registrando a ocorrência. É árduo, lento, gradativo, mas acreditamos que só dessa forma vamos melhorar o atendimento a essa população.”
Desde a determinação do STF, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do DF, de junho a dezembro de 2019, foram registradas 15 ocorrências de homotransfobia na capital. Entre janeiro e setembro deste ano, houve 27 crimes desse tipo. Na avaliação do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF, o deputado distrital Fábio Félix, o impacto de decisões favoráveis à comunidade LBGTQ+ é importante. “As interpretações feitas pela Justiça são um grande ganho, mas, infelizmente, não têm o caráter garantidor que a lei tem. Corre-se sempre o risco, porque não há lei aprovada, sempre depende da interpretação”, alerta.
Inclusão
Aos 7 anos, Gisela da Silva Fernandes, hoje com 45, soube que era igual a Roberta Close, transexual ícone de beleza nos anos 1990. Mas foi só em 2014 que se assumiu como mulher trans. Desempregada, a assistente social com pós-graduação em assistência social e saúde pública pela Faculdade Projeção, afirma que precisa enfrentar uma rotina de privação de direitos. “Não respeitam a minha identidade de gênero, sofro preconceito ao procurar emprego, falta de banheiros públicos adequados. A nós são negados todos os direitos”, lamenta. Agora, vive da ajuda que recebe do Ambulatório Trans e do Creas Diversidade. “Não tenho dinheiro nem para comprar os hormônios femininos que a médica receitou. Se não fosse o preconceito e eu tivesse um emprego, tudo seria diferente”, afirma Gisela, que luta para conseguir uma cirurgia de redesignação sexual na rede pública, ofertada em apenas no Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Porto Alegre e Recife.
Histórias como as de Gisela são recorrentes. Uma das mais emblemáticas da cidade é a da professora Natalha Nascimento, 36 anos. Em 2018, ela foi vítima de recorrentes ofensas transfóbicas feitas por funcionário de uma pastelaria na Rodoviária do Plano Piloto. O caso foi parar na Justiça. Em acordo com a empresa, homologado pelo 6º Juizado Especial Cível de Brasília, Natalha optou por palestrar para os agressores.
“Ser uma pessoa trans no Brasil é um risco. Nosso país carrega uma história de violência impressionante contra essa população. Não é só excluir, precisa matar”, protesta a educadora, que sofreu tentativa de assassinato em 2013.
Formada em matemática pela Universidade Estadual de Goiás, em Águas Lindas, ela reconhece, porém, a capacidade transformadora da educação. Ela começou a estudar quando “saiu da roça”, Açailândia (MA), aos 9 anos. Aos 21, concluiu o ensino médio, iniciou o processo de transição de gênero e a faculdade. Mulher, trans, negra e periférica, Natalha quebrou barreiras usando toda a oportunidade para educar quem estivesse disposto. “Sempre acreditei que a educação é a melhor forma de combater violência sem gerar violência.”
Depois do episódio envolvendo a pastelaria, Natalha passou a promover encontros de caráter educativo nas proximidades de casa, na Estrutural. Em maio de 2019, fundou a Ong IPI — Instituto Incluindo pra Incluir. O foco inicial era ajudar a população trans, mas o auxílio se estendeu a toda a comunidade.
Quando começou a transicionar, Natalha não tinha condições financeiras para custear tratamentos hormonais ou intervenções estéticas e cirúrgicas nem havia o Ambulatório Trans no DF. “Na época, fazíamos nosso próprio tratamento, aplicando produtos para alterar o corpo, e muitas delas morreram. A transição de gênero era nós por nós”, lembra. “Hoje, estou muito bem como eu estou. Olho no espelho e me vejo exatamente como eu queria ser”, reforça.
Paula Benett, da Sejus, também reforça ser essencial a educação, para que as próximas gerações acolham a diversidade com menos preconceito. “A sociedade que queremos é uma sociedade justa e igualitária.”
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