“A fome é realidade para nós. E mãe tem aquilo que só a gente entende, de deixar de comer para dar para os filhos. Então, têm vezes que eles estão almoçando e perguntam ‘mãe, você já comeu?’, eu digo ‘sim, meu filho, pode ficar tranquilo’, mas se eu tivesse pegado para mim, ia faltar para eles.” O relato de Maria Francisca da Conceição, 36 anos, evidencia que uma condição de vida básica, como conseguir colocar comida no prato de todos na casa, é privilégio para uma parcela de moradores do Distrito Federal.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em setembro mostram que 319 mil domicílios do DF estão em situação de insegurança alimentar. Os casos graves aumentaram 250% desde 2013 (leia Para saber mais). Em entrevista ao Correio no mesmo mês, o governador Ibaneis Rocha (MDB) afirmou que “a fome no ano que vem vai ser um grande problema” a se enfrentar. Enquanto esse cenário é analisado com preocupação pelo Estado, famílias lutam por uma refeição com arroz, feijão e carne.
“Estou desempregada e meu marido trabalha como eletricista fazendo uns bicos, mas não tem nada fixo. Temos três filhos e um sobrinho morando com a gente e a situação está muito mais difícil este ano. Vivemos de cesta básica. A carne está muito cara e têm vezes que não consigo fazer uma mistura, então o alimento é arroz e feijão”, conta Maria Francisca, moradora do Sol Nascente, região considerada uma das maiores favelas do Brasil, que reúne outras histórias como esta.
Ela lembra do que classifica como sorte: ter sido aprovada para receber o auxílio emergencial do governo federal, que vinha garantindo pequenas compras de supermercado, mas não consegue esquecer o dinheiro perdido após sofrer um golpe. Um homem ofereceu ajuda à comunidade para utilização do aplicativo da Caixa Econômica e direcionou R$ 1,2 mil de Maria e do marido para a própria conta. “Aquele foi um dos meses mais duros para nós. É triste ver o filho o dia todo sem se alimentar, comendo alguma coisa de noite só porque um vizinho deu. A gente tem de achar força de onde não tem”, desabafa.
O IBGE classifica, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), três níveis de insegurança alimentar: leve, moderado e grave. O leve é quando há “preocupação ou incerteza quanto ao acesso a refeições no futuro e qualidade inadequada dos alimentos, resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade deles”. São 207 mil domicílios no DF neste estágio. O nível grave é caracterizado pela “redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação, resultante da falta de comida entre todos os moradores”, situação em que “a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio”. São 49 mil casas na capital enquadradas neste contexto.
Para Vicente de Paula Faleiros, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em sociologia da saúde ligado ao Departamento de Serviço Social, os números lembram que o Distrito Federal vive um exemplo clássico de desequilíbrio entre camadas populacionais. “Brasília mostra uma das situações mais ríspidas e expressivas da desigualdade social, com grupos em que sobra alimento, de políticos, juízes, empresários e funcionários de alto escalão, e grupos em que falta comida. É uma sociedade segregada e a população excluída busca sobrevivência”, pontua.
Os caminhos para combater esses problemas, na visão do especialista, passam pela busca por políticas públicas efetivas. “Um perigo é cair nesse neofilantropismo de achar que doação eventual de cesta básica resolve. Essa é uma atitude importante de emergência, mas precisamos sair do emergencial e ir para o estrutural. Ter uma renda básica para quem precisa, organizar o acesso ao trabalho para essas pessoas, mesmo que temporário, priorizar a escolaridade com bolsas de estudo, ou seja, dar condições para que o cidadão sobreviva com autonomia, com investimento planejado”, explica Vicente.
Doações e auxílios
Autonomia é uma palavra distante para Maria Lindalva Rocha, 43. Ela e alguns vizinhos muitas vezes dependem de doações para ter o que colocar na geladeira, ao lado das garrafas com água. A situação piorou durante a pandemia do novo coronavírus. Doméstica, dona Maria foi dispensada do trabalho, em Ceilândia, no começo da crise sanitária.
“Meu marido é ajudante de pedreiro, então, quando tem trabalho, ele consegue R$ 70 da diária do serviço. Quando não aparece obra, a gente se vira como pode e o almoço é arroz e ovo mesmo, que é mais barato. Junto R$ 2, porque cada unidade de ovo é R$ 0,50, e compro uns quatro.” Maria Lindalva tem quatro filhos, de 11 a 19 anos e um cachorro, vira-lata caramelo chamado Feijão.
A filha de 18 anos tem gastrite e chegou a se consultar, mas as dificuldades em realizar exames pela rede pública e seguir as orientações médicas não permitem uma melhora. “Tem dia que não come nada. Mas meu irmão é nosso vizinho, então, quando não tem almoço aqui, ele ajuda. Também recebemos umas cestas básicas que o pessoal da rua arruma, que o líder comunitário consegue. Fruta e verdura é mais difícil, mas tem uma moça que consegue na feira e doa”, relata.
Maria chegou a receber valores do Bolsa Família durante um tempo, mas foi cortada em 2016, quando conseguiu emprego fixo em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Desde que saiu de lá, ela não pôde voltar a fazer parte do programa. Este ano, a dona de casa foi beneficiária do auxílio emergencial, “que não rende muito porque comida está muito cara”. Contando que está disponível para qualquer tipo de trabalho informal, como faxinas, por exemplo, ela segue tirando forças do núcleo familiar.
Na casa de Josélia Marques, 34, esse apoio também é essencial. “Eu e meu marido corremos muito atrás das coisas para não faltar comida. Temos uma filha de 8 anos e um bebê de quatro meses, e não faltando arroz, feijão e carne, já ficamos satisfeitos. Não fico pensando em comer nada diferente, não. Nem ligo muito para bolo, pão. As crianças gostam mais e a gente consegue comprar de vez em quando”, conta.
A pequena Iasmin, com a natural inocência infantil, às vezes reclama de comer sempre a mesma coisa, pede sorvete no calor. A mãe explica que, se comprar o que ela quer, vai faltar o leite do irmão. Uma ajuda veio com o Bolsa Alimentação, pelo cartão material escolar. “São R$ 83 por mês, então dá para comprar algumas coisas no supermercado. A gente volta com três ou quatro sacolas porque os preços estão bem altos, mas já é alguma coisa”, ressalta.