Relance fulminante
Há seres tão sensíveis que, paradoxalmente, para se defender, só conseguem se expressar no mundo com extrema agressividade. Esse parece ser o caso da escritora mineira Maura Lopes Cançado. Ao errar os olhos pelas prateleiras de um sebo da cidade me detive no título fulminante de um livro com capa alaranjada:Hospício é Deus — Diário I. Fiquei intrigado e senti um arrepio, pois imaginei que, para intitular um livro dessa maneira, a autora deveria ser uma pessoa com uma carga intensa de angústia existencial, religiosa e metafísica.
E as minhas expectativas se confirmaram com a leitura do livro da moça de uma família rica de Minas e que se internou voluntariamente em um sanatório para doentes mentais: “O que me assombra na loucura é a distância — os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura”.
Maura nasceu em uma fazenda do interior de Minas Gerais, em 1929, e tudo em sua vida transcorreu de maneira vertiginosa. Aos 5 anos, aprendeu a ler. Aos 14, entrou para um aeroclube com a intenção de obter o brevê. Não conseguiu, mas casou-se com um aviador.
Sempre viveu em guerra com o mundo: “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com toda agressividade”. Maura só publicou dois livros:O sofredor do ver(contos, 1968) eHospício é Deus – Diário I(1979), mas produziu uma obra singular dentro da literatura brasileira moderna, com uma intensidade dramática à altura de sua vida.
Maura foi revelada no célebreSuplemento Dominical do Jornal doBrasil, editado por Reinaldo Jardim. Alguns poemas de Maura, escritos em papel de embrulho, foram descobertos por um amigo do poeta Ferreira Gullar e levados à redação.
O poeta carioca Armando Freitas Filho leu textos da escritora, mas só viu Maura uma vez na vida. Entretanto, foi um relance fulminante. Ela trajava um vestido vermelho e tinha o cabelo da mesma cor. No livroArremate(Cia das Letras), a ser lançado no próximo mês, Armando inclui o poemaRompante, em que traça um pungente retrato físico, lírico e anímico de Maura em passagem pela avenida e pela vida:
“Vestida de boa senhora, ela injeta a sombra onde o sol durava./A passos largos, batom vermelho, cabelos violentos./Ela era dessas pessoas que deslocavam o ar/quando passava.”
Clarice Lispector admirava os textos de Maura. E Armando chegou a pensar que as duas poderiam ser a mesma pessoa. E, de fato, mas Clarice deixou o inconsciente escorrer pela literatura, enquanto Maura misturou o inconsciente com a própria vida, imprimindo alta voltagem dramática por onde passou: “lispectoriana escrita e escarrada/e sua saia levantava o vento./Maura Lopes Cançado na avenida/da sua vida, caminhando até o fim”.