Impacto na reciclagem

Por causa do novo coronavírus, cooperativas pararam de separar resíduos secos, o que deve afetar a duração do aterro sanitário do DF. Por isso, é cada vez mais importante o descarte consciente e sustentável

A pandemia do novo coronavírus impôs mudanças profundas na rotina das famílias, com medidas sanitárias que restringiram a circulação de pessoas, fecharam estabelecimentos comerciais e alteraram hábitos de consumo. Assim como aconteceu em outros países atingidos pela crise, os impactos na geração e no recolhimento de resíduos foram imediatos. Para entender o que aconteceu no Distrito Federal, o Correio analisou dados da coleta nos últimos cinco anos e constatou que as principais consequências recaíram sobre os lixos seco e hospitalar.

É neste cenário de transformações e incertezas sobre o futuro que se retoma um debate crucial para o meio ambiente: o consumo e o descarte responsável. Na série de reportagens que começa hoje, o Correio ouviu usuários do sistema de limpeza pública, pesquisadores, profissionais e o poder público, para entender não apenas os impactos da pandemia na produção de resíduos, como também apontar os caminhos que levem a uma vida mais sustentável.

Já faz um tempo que a família da administradora de empresas Carina Bernardes, 46 anos, entendeu que precisava ter uma relação mais responsável com o planeta. Nesses seis meses de pandemia, ela viu dobrar a produção de lixo orgânico doméstico. Também percebeu um aumento do número de embalagens de produtos de limpeza em casa, como álcool e detergente líquido. Por outro lado, o período de isolamento permitiu que a família aprimorasse os cuidados com a destinação dos resíduos.

 

Moradora de Águas Claras, Carina separa de tudo: vidros, tampinhas de garrafa, metal, lixo eletrônico, embalagens, óleo usado. Em seguida, entrega os itens em um ponto de coleta perto de casa, chamado Mercado Evolua. “Eles têm parceria com cooperativa. Recebem de tudo e repassam para os trabalhadores. O resíduo orgânico, levo para a casa da minha mãe, onde fizemos uma composteira. Antes da pandemia, enchia um pote de vidro de 4 litros por semana. Agora, são dois”, detalha. Quando as compras de orgânicos chegam, Carina lava todas as embalagens, incluindo o saquinho que envolve o pé de alface, e as devolve para o fornecedor. “Lamento que a coleta seletiva não tenha sido retomada totalmente. Muita coisa que poderia ser reaproveitada está se perdendo.”

Carina tem razão. Só no primeiro semestre deste ano, houve diminuição de 45% na coleta de resíduos recicláveis no DF. De janeiro a junho, o Serviço de Limpeza Urbana (SLU) recolheu 6.378 toneladas. No mesmo período do ano passado, esse total chegou a 11.595 toneladas (veja No detalhe). A queda se deve à suspensão da coleta seletiva em 20 de março. A medida surgiu para garantir a segurança de garis e catadores diante de uma ameaça totalmente desconhecida.

A partir dali, todos os resíduos produzidos nos lares da capital do país tiveram o mesmo destino: o Aterro Sanitário de Brasília (leia Para saber mais). A mudança afetou não só a capacidade do espaço — cuja vida útil inicial era de 13 anos — como também a cadeia de aproveitamento de materiais recicláveis. Passados quase seis meses da interrupção, o serviço ainda não voltou totalmente ao normal.

A professora do Centro Universitário de Brasília (UniCeub) Francislete Melo, doutora em biologia, chama a atenção para dois problemas: o risco dos resíduos hospitalares em ambientes domésticos sem destinação correta e o comprometimento da capacidade do aterro sanitário. “Máscaras e luvas deveriam ser descartadas adequadamente e incineradas ou autoclavadas, no processo que esteriliza e descaracteriza o material. Esse é um problema preexistente que se agrava por causa da produção (de lixo) e da demanda (por equipamentos de proteção), que aumentou”, destaca.


Para saber mais

Duração afetada
Inaugurado em 17 de janeiro de 2017, o Aterro Sanitário de Brasília tem capacidade para comportar 8,13 milhões de toneladas de materiais não reutilizáveis, por pouco mais de 10 anos. O espaço, entre Ceilândia e Samambaia, surgiu para receber todo tipo de material que não possa ser reaproveitado por meio da reciclagem ou da compostagem. No entanto, o descarte inadequado de lixo seco ou de alimentos que podem virar adubo contribui com o aumento precoce do volume aterrado.

Minervino Júnior/CB/D.A Press - Aterro Sanitário funciona em região entre Ceilândia e Samambaia. A interrupção da coleta seletiva levou 100 toneladas diariamente para o local. Antes da pandemia, a coleta seletiva atendia 54% da população do DF
Minervino Júnior/CB/D.A Press - Minervino Júnior/CB/D.A Press
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Ações coletivas e sustentáveis

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que a maior parte dos resíduos domésticos do país termina sob cuidados dos serviços de limpeza. No Distrito Federal, 85,9% desse material são coletados diariamente, 12,3% são depositados em caçambas de empresas, 1,4% é queimado e 0,3% recebe outro destino. Há cinco anos, contudo, a abrangência desse recolhimento alcançava 91,2% dos cerca de 1 milhão de domicílios brasilienses.
Em Águas Claras, o Correio conheceu um projeto que, se replicado, pode tornar Brasília exemplo para o país. Os moradores decidiram que no condomínio Le Club, prédio de ocupação mista com 200 unidades residenciais e 48 comerciais, adotariam a meta de lixo zero. Eles estão no caminho para conseguir atingi-la.
Há 10 anos, o aposentado Jaime Ferreira Lopes, 65, despertou para a necessidade de cuidado responsável com os resíduos. Na terceira gestão como síndico, encontrou no subsíndico Rafael Bahia e no engenheiro ambiental Cássio Araújo de Oliveira Rodrigues aliados para colocar o projeto em prática. “Contratamos o Instituto Arapoti, uma ONG (organização não governamental) que presta assessoria para quem quer implantar projetos de sustentabilidade. São R$ 800 por mês, um valor pequeno perto do custo e benefício da gestão responsável”, avalia.
Especialista em resíduos sólidos, Cássio separava todo o lixo domiciliar antes mesmo de ser convidado a implantar o projeto no condomínio. Para os orgânicos, ele contratou uma empresa especializada. “Eles deixam uma composteira e buscam uma vez por semana. Custa R$ 50 por mês”, diz.
Sobre a iniciativa no Le Club, Cássio detalha orgulhosamente os avanços. O prédio tem ecoponto para coleta de óleo de cozinha; pilhas e baterias; tampas de garrafa; medicamentos vencidos; esponjas de pia, entre outros. “As pilhas, entregamos no ponto de logística reversa. As tampinhas vão para a ONG Pata na Tampa. Eles as vendem e usam o dinheiro para castrar animais de rua. Ainda adotamos o modelo de coleta do SLU. Mas a meta é separar orgânicos, rejeitos (fraldas, papel higiênico) e recicláveis. E, em um futuro próximo, teremos uma horta comunitária”, conta Cássio.
Presidente do Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal (SLU), Jair Tannús afirma que a interrupção da coleta seletiva levou 100 toneladas diariamente para o Aterro Sanitário de Brasília. Ele reconhece que houve impactos ambientais, sociais e econômicos por causa da interrupção, principalmente para catadores. “Antes da pandemia, a coleta seletiva ainda não atendia a totalidade do DF, abrangendo cerca de 54% da população. A ampliação do serviço passou a ser possível com os novos contratos de limpeza urbana, assinados em novembro de 2019. O SLU estava justamente na fase de fechamento desse planejamento quando ocorreu a pandemia”, justifica.
Com uma taxa de recuperação de apenas 2,1% dos materiais recicláveis de janeiro a junho — a meta era de 4,36%. “Somando a coleta seletiva e a compostagem, o DF recupera quase 10% do total de resíduos domésticos coletados, índice excelente em termos de Brasil. O potencial de recuperação, a partir de experiências de outros países e da composição dos resíduos coletados, supera os 22% apenas para resíduos secos e até 50% para os orgânicos”, diz Jair. Ele acrescenta que há iniciativas em andamento, especialmente em meio virtual, focadas na gestão de resíduos. “A participação da população faz parte de um processo de crescimento gradual da consciência ambiental”, completa o presidente do SLU.