“Minha netinha, de apenas 5 anos, sofreu um estupro e não pudemos protegê-la.” Esse é o desabafo da avó de uma das 216 crianças e adolescentes abusadas sexualmente no Distrito Federal entre janeiro e agosto deste ano. Embora os casos tenham diminuído 23% em relação a igual período de 2019 (281), especialistas ouvidos pelo Correio analisam que a redução pode estar atrelada à subnotificação dos delitos. Foram registrados ainda outros 148 estupros de não vulneráveis.
“Um estupro destrói a vida da vítima, assim como de uma família. Precisamos lidar com essa ferida todos os dias. É devastador ver minha menina, que era tão cheia de luz e vida, de uma hora para outra, perder o brilho e a alegria”, completa a avó de Geovana*, que sofreu o último abuso em maio deste ano. O agressor era um vizinho da família, cuja casa fica no Paranoá. Nesta ocasião, câmeras de segurança chegaram a filmar o acusado atraindo a vítima à casa dele, sob o pretexto de assistir a televisão. Sem qualquer malícia, a pequena o acompanhou.
Após o crime, a menina relatou o caso à mãe e à avó, que denunciaram o estuprador, de 53 anos, à 6ª Delegacia de Polícia (Paranoá). Ele fugiu e foi capturado no município de Novo Gama (GO), em agosto. “A Geovana contou aos investigadores que não tinha sido o primeiro abuso, que o crime ocorria há um tempo. Descobrir que esse monstro tirou a inocência da minha neta partiu meu coração. Todos os dias tentamos entender como ele se aproximou e fez isso com ela”, confidencia.
“O perigo está onde menos esperamos. Infelizmente, eu e minha família aprendemos isso da pior forma. É um crime perverso, que modificou completamente a Geovana. Antes, ela era uma criança feliz, sempre animada e com bom apetite. Agora, mudou. Não tem vontade de comer, nem de brincar com as amigas e está muito amedrontada. Onde tem um homem adulto, não quer estar perto. Ela não consegue dormir e está extremamente sensível. Ao menor acontecimento, chora muito, se torna agressiva”, lamenta a avó.
Sinais
Os comportamentos apresentados pela menina são alguns dos sinais que podem ser percebidos em vítimas de estupro, afirma a psicóloga e subsecretária de Atividade Psicossocial da Defensoria Pública do DF, Roberta de Ávila. “É muito difícil determinar um quadro que essa criança ou adolescente pode apresentar após a violência. Mas há mudanças, como isolamento social, o silêncio como um mecanismo de defesa, estresse, ansiedade e até depressão”, analisa.
A especialista explica que cada vítima pode responder ao abuso de modos diferentes, e destaca fatores que pesam no impacto psicológico. “A duração, o grau de violência, a idade no início dos estupros e o grau de relacionamento entre vítima e abusador”, pontua. “A violência sexual, psicologicamente falando, pode ser compreendida como evento traumático e como fator de risco para o desenvolvimento saudável da vítima”, afirma Roberta de Ávila.
“Os estupros, incluindo de vulneráveis, são um problema grave de saúde pública. O tratamento psicológico é indispensável nesses casos, e não apenas à vítima, mas para a família. O atendimento especializado à criança e ao adolescente é importante para o desenvolvimento de estratégias adaptativas para que as vítimas lidem com o trauma”, acrescenta a subsecretária.
Perigo
O secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, destaca a queda de 20,4% nos registros de estupro em relação ao mesmo período de 2019, o que representa 93 crimes a menos. “A secretaria produziu estudos que apontam que cerca de 80% desses casos acontecem no interior das residências e 60% são cometidos contra vulnerável, o que dificulta o trabalho da polícia. Além disso, boa parte dos autores são conhecidos da vítima ou da família”, observa o chefe da pasta.
Para coibir esse tipo de violência, Torres afirma que o governo tem aprimorado os canais de denúncia e o trabalho de investigação, identificação e prisão dos autores com o uso de tecnologia. “Fortalecemos, ainda, as ações conjuntas com outros órgãos de governo e da sociedade civil, como as secretarias da Mulher, de Justiça e com a Vara da Infância e da Juventude do DF. Esse esforço é importante não só para retirar os agressores das ruas, mas também para informar e conscientizar as famílias, bem como para garantir o suporte necessário às vítimas.”
* Nome fictício em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Estatísticas
Estupro de vulnerável
2019281
2020216
Não vulnerável
2019176
2020148
Total
2019457
2020364
Fonte: SSP/DF