Mestre da brasilidade
O compositor Jards Macalé está comemorando 50 anos de carreira. Ele sintetiza algumas das experiências mais inventivas da arte brasileira em conexão com a arte internacional, nas últimas décadas. É capaz de fazer o rock de Chuck Berry virar samba. Mistura Nelson Cavaquinho e Hélio Oiticica, o Teatro de Arena e o Cinema Novo, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, João Gilberto e Jimi Hendrix, a Bossa Nova e a Tropicália.
Em 1977, no fim da ditadura, Moreira da Silva e Jards Macalé fizeram um show em Vitória, com muito sucesso. Mas foram presos e, a certa altura, o delegado ordenou em direção a Macalé: “Tira os óculos e recolhe o homem”. A frase virou tema de um samba de breque de Macalé em parceria com Moreira.
Depois, vieram a Brasília e Macalé fez um show na Papuda. Os presidiários juntaram mesas, improvisaram um palco e adoraram. Para comemorar, fizeram uma feijoada deliciosa. Macalé levou uma terrina para Moreira, que levantou a tijela durante o espetáculo do Projeto Pixinguinha como se erguesse a taça Jules Rimet.
No começo da década de 1980, Macalé entrou em estado de depressão e decidiu se suicidar. A história está registrada no livro Pavões Misteriosos, de André Kucinski, mas Macalé havia me contado o caso em entrevistas que fiz com ele em Brasília. Com determinação inabalável, começou a telefonar para os amigos, pois queria ouvir a voz deles pela última vez. Um deles foi João Gilberto, que chamava Macalé de Macala.
João não costumava receber visitas em sua casa. Mas percebeu que Macalé estava mal e telefonou para ele: “Macala, venha urgente até o meu apartamento”. Macalé acatou e, ao chegar, João indicou que ele deitasse em uma poltrona. Em seguida, pegou o violão e começou a cantar Rancho fundo, de Ary Barroso: “No rancho fundo/De olhar triste e profundo/ Um moreno canta as mágoas/tendo os olhos rasos d’água”.
João tocou durante várias horas, Macalé caiu em sono profundo. Quando acordou no outro dia, percebeu que estava curado do desejo de morte. Que sensibilidade, que humanidade e que clarividência de João Gilberto. Neste momento de anti-Brasil, é preciso buscar inspiração e luz nos mestres da brasilidade.
Macalé é uma referência para as novas gerações. Encontrei entrevista de 1988, para o Correio, em que ele diz algo tragicamente atual: “O político que quiser fazer um projeto para o Brasil precisa conhecer todos os artistas progressistas, inventivos, íntegros. Sem respeitar esses artistas expressivos não se fará nenhum Brasil. A burrice inviabiliza o Brasil”.
No último disco, Macalé fez uma releitura de Juízo final, de Nelson Cavaquinho, que deve ser cantada como um samba em feitio de oração para os tempos em que vivemos: “O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de tocar os corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente/Quero ter olhos pra ver/A maldade desaparecer”.