O Distrito Federal não está pronto para o retorno às aulas, avalia o epidemiologista e professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB) Jonas Brant. A decisão de reabrir os estabelecimentos de ensino, argumenta, é política, e não técnica. “Todos os documentos internacionais apontam que qualquer atividade de retorno escolar deve ser pensada somente quando os níveis epidêmicos estiverem baixos. O cenário atual do DF não é esse”, afirma o especialista, em entrevista concedida ontem ao CB.Saúde, parceria do Correio Braziliense com a TV Brasília.
Do ponto de vista científico, defende o professor, não há sustentação para a volta das atividades presenciais num momento em que o número de mortes na capital federal por covid-19 está em crescimento. “Eu, pessoalmente, prefiro confiar na ciência do que, necessariamente, na economia, como uma decisão para a saúde dos meus filhos. Todas essas ações de preparação são para a prevenção da doença, e não para o controle da epidemia. Em uma escola com 300 crianças, a probabilidade de que uma delas tenha o vírus é muito grande”, justificou.
Para o epidemiologista, o cenário atual, com quantidade elevada de casos e de mortes, é resultado de erros na estratégia de combate à pandemia. As medidas aplicadas, argumenta, foram, principalmente, no sentido de conter os problemas gerados pela covid-19, e não de enfrentar o vírus. O reforço da atenção primária é um dos pontos deixados de lado no DF, segundo o professor. “Não fizemos isso e, agora, estamos colhendo uma consequência triste.” Confira os principais trechos da entrevista:
Qual é o cenário da pandemia hoje no DF?
O cenário atual no Distrito Federal é a consequência daquilo que vínhamos avisando lá atrás. Não adotamos atividades fundamentais para o enfrentamento do vírus. Adotamos atividades para tentar conter a consequência. Somente a ampliação do número de leitos não é suficiente para conter o vírus. É preciso fortalecer a atenção primária, os postos de saúde, para que eles possam ter capacidade operacional de encontrar os casos, rastrear, isolar casos e contatos, e garantir apoio social e econômico nesse momento tão difícil. Não fizemos isso e, agora, estamos colhendo uma consequência triste, que é o número elevado de óbitos e recordes a cada dia.
É o momento de voltar às aulas?
Temos discutido que as crianças têm mais dificuldade de adotar medidas de biossegurança. Ou seja, prestar atenção na máscara e onde encostam, desinfetar a mão. Um estudo feito na Espanha mostra que, se colocar 20 crianças em uma sala de aula, sendo que 10 tem um irmão, nesse primeiro dia, já temos mais de 70 interações. Não estou colocando em contato uma criança com a outra, estou colocando em contato redes de contato dentro dessa sala. No segundo dia, já são 800 pessoas. No terceiro, já são mais de mil. A possibilidade de interação que se coloca, com o retorno das atividades escolares, é grande. Nossas escolas têm uma infraestrutura deficitária para dar conta dessa questão de orientação. Todos os documentos internacionais apontam que qualquer atividade de retorno escolar deve ser pensada somente quando os níveis epidêmicos estiverem baixos. O cenário atual do DF não é esse. É uma decisão política, e não técnica. Temos de adotar medidas, nesse momento, para evitar a expansão da doença.
Os donos de escola dizem que a situação está tranquila. O GDF sinaliza que está tranquilo. Especialistas, como o senhor, dizem que não é o momento. Quem devemos levar em consideração?
Eu, pessoalmente, prefiro confiar na ciência do que, necessariamente, na economia como uma decisão para a saúde dos meus filhos. Todas essas ações de preparação são para a prevenção da doença, e não para o controle da epidemia. Em uma escola com 300 crianças, a probabilidade de que uma delas tenha o vírus é muito grande. Tenho, hoje, por dia, detectados, com a baixa capacidade de testagem que o DF tem, cerca de 2 mil. É provável que tenha muito mais casos do que esses. Se eu juntar 300 crianças em uma escola, vou ter uma delas contaminada, e vou ter, provavelmente, um surto. Pode ser que, pelas medidas que estão sendo adotadas, esse surto não seja grande, mas o volume de surtos ocorrendo nesse momento pode gerar dezenas num cenário onde não há mais capacidade hospitalar. Não podemos nos dar o luxo de correr riscos neste momento. A medida, agora, é de enfrentamento do vírus para, depois, voltar às atividades escolares.
Muitos pais precisam da escola para trabalhar. Como conciliar esses interesses?
Primeiro, devemos controlar o vírus, como a maioria dos países tem feito. Depois, retomamos as atividades escolares e as não essenciais. O retorno, quando ocorrer, deve priorizar os pais que precisam trabalhar e que não têm onde deixar as crianças, para que se consiga atender a esse público mais vulnerável, que tem dificuldade de internet em casa, que tem uma necessidade especial. Então, atende-se a esse grupo pequeno nas escolas e cria-se critério de priorização para esse retorno. Essa volta deve se dar somente com o controle da epidemia. Hoje, são 2 mil casos registrados por dia no DF, capacidade de leitos disponíveis baixa, sobrecarga dos profissionais. Voltar hoje representa possibilidade de aumento.
Como avalia a atuação do GDF em relação à volta às aulas? A data de retorno das escolas públicas Está mantida.
É importante criarmos um cenário de diálogo com a sociedade. Trazer escolas, professores, especialistas em educação, o setor de saúde, para construir uma proposta, e não unilateral. Esse é o melhor caminho. Não há saída para essa epidemia que não seja a colaboração e a integração.
Em sua avaliação, as escolas só deveriam voltar às aulas quando houver uma vacina?
Elas vão ter de voltar antes. Não acho que a vacina deva sair em curto período. Acho que a gente não deve contar com essa vacina. Se sair e ficar pronta, ótimo, mas não devemos esperá-la como critério. Esse é momento de se planejar para que, quando tenha condição de retorno, os planos já estejam feitos. Hoje, é inviável pensar em retorno das aulas, porque os planos não estão feitos, a adequação da estrutura não está feita e o cenário epidêmico é o pior possível.
Isso vale tanto para as escolas públicas quanto para as privadas?
Sem dúvida nenhuma. Lógico que a gente imagina que as escolas privadas têm capacidade financeira e infraestrutura melhores do que as públicas, mas não quer dizer que as particulares estejam preparadas. Historicamente, elas não focaram nesse aspecto da saúde. Reconstruir métodos de saúde para esses ambientes é fundamental.
O DF foi apontado como exemplo no início da pandemia, mas, hoje, a situação é dramática. Onde erramos?
Não dá para dizer que foram só erros. Houve acerto importantes no DF. O trabalho desenvolvido pelo Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) é espetacular. Foi um dos primeiros do país a se organizar, a chamar parceiros para dar conta da escala de testagem. Foram desenvolvidos métodos novos frente à crise de insumos, foi feito o fechamento do DF para garantir a contenção inicial da pandemia. No entanto, algumas medidas que são funcionais não foram adotadas. Uma delas é o fortalecimento da atenção primária. O DF foi uma das últimas unidades da Federação a fazer essa incorporação na estratégia da saúde da família. Quando fez, foi de maneira tímida, quase não temos agentes comunitários. Esse era o momento de investir na ampliação deles, que são pessoas da própria comunidade, onde estão essas unidades e que ajudam no fortalecimento dessas ações de promoção e fortalecimento.
Estamos na fase de imunização de rebanho?
Manaus mostrou que, a partir de 20% das pessoas tendo respostas sorológicas, a epidemia começou a cair, porque as pessoas estão adotando medidas de proteção, e o vírus tem encontrado dificuldade em se manter, chegando a proporções que o serviço de saúde pode enfrentar esse vírus. O DF, na última avaliação, não chegava a 10% das pessoas com resposta sorológica. Não tivemos no último mês nenhum resultado de inquérito sorológico que pudesse nos dizer qual é a situação. Mas é provável que, a partir de setembro, a gente comece a chegar perto desses 20% e, talvez, o número comece a cair, permitindo à Secretaria de Saúde fazer o rastreamento de casos e contatos para tentar conter esse vírus.
O senhor vem acompanhando os testes realizados pela UnB em relação à vacina produzida pelo Instituto Butantan e pela empresa chinesa Sinovac?
Não estou diretamente envolvido, mas é um grupo do HUB (Hospital Universitário de Brasília) que tem se dedicado e trabalhou com profissionais da saúde como grupo de teste, porque é um grupo com maior risco de infecção. Ao testar uma vacina, é preciso encontrar um lugar com muitos casos, porque se faz testes com a vacina e com um placebo para ver se, realmente, há prevenção. Por isso, o Brasil tem sido escolhido para teste de muitas vacinas, porque somos um exemplo de país que não conseguiu se organizar para conter o vírus.
Ainda há chances de vermos uma vacina pronta para ser aplicada na população neste ano?
A esperança é a última que morre, mas é pouco provável que a gente consiga oferecer vacina para a nossa população ainda neste ano.
É preciso priorizar grupos para quando ela estiver pronta?
Sem dúvida, não vamos conseguir produzir vacina para toda a população de uma vez. Vamos ter de discutir a prioridade. É um princípio ético. O desafio é da sociedade.
Mais de 100 mil mortos. O Brasil está perdendo a guerra para a covid-19?
Conseguimos fazer um trabalho importante, mas não estamos conseguindo fazer o que é essencial, de maneira completa. Estamos entre os países com o maior número de casos no mundo e com pior testagem. A Índia é o país com maior número de casos por dia, no entanto, eles testaram cinco vezes mais do que o Brasil. É importante conseguir organizar a capacidade de testagem, o rastreamento de contatos, o isolamento desses contatos, para que se possa conhecer a epidemia no país de maneira efetiva e diminuir número de casos.