Farmácia no Núcleo Bandeirante vende ilegalmente ''kit covid-19''

Remédios não têm eficácia comprovada contra a covid-19. Fármacos vendidos nos kits precisam de receita, mas são comercializados mesmo sem a prescrição médica

Jaqueline Fonseca
postado em 07/08/2020 12:54 / atualizado em 07/08/2020 16:48
O Conselho Regional de Medicina alerta repetidamente que automedicação pode trazer danos à saúde -  (crédito: Jaqueline Fonseca/CB/D.A Press))
O Conselho Regional de Medicina alerta repetidamente que automedicação pode trazer danos à saúde - (crédito: Jaqueline Fonseca/CB/D.A Press))

Uma farmácia localizada no Núcleo Bandeirante vende, de forma irregular, medicamentos que supostamente ‘previnem’ e ‘tratam’ a covid-19, um tipo de serviço considerado criminoso pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal.

O contato para a compra na Drogaria Ultra Popular é feito pelo WhatsApp de um funcionário que diz se chamar Flávio. O orçamento e o pedido são feitos antes e de acordo com a demanda da pessoa: se é pra “prevenir” ou para “curar”. O kit anti-covid-19 inclui Azitromicina, Leverctin, Zinco quelato, além de Vitamina C e D, ao custo de R$ 156. Já o kit de tratamento vem com Azitromicina, Zinco Quelato, Dexametasona e Clexane - com seis seringas - e custa R$ 407.

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Conselho de Medicina do Distrito Federal e Conselho de Farmácia do DF ressaltam que não há eficácia comprovada para nenhum desses medicamentos contra a covid-19.

Simulando interesse nos produtos, a reportagem entrou em contato com o vendedor e buscou informações sobre o negócio. Os fármacos são vendidos sem receita, embora a Anvisa tenha informado que todos esses remédios já estavam sujeitos a prescrição médica - mesmo antes da pandemia. O pagamento pode ser à vista ou em até seis vezes no cartão. Além disso, o serviço de delivery funciona em todo o DF, sem cobrar taxa.

A reportagem foi até a drogaria Ultra Popular do Núcleo Bandeirante e, sem receita, comprou o “kit covid-19”. Sem qualquer orientação médica, o atendente explicou como administrar os fármacos, sem saber que estava sendo gravado.

Por telefone, a delegada Mariana Almeida, responsável pela 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante), que fica em frente à farmácia, recomendou à reportagem que fosse registrada uma ocorrência virtual para apuração dos fatos. Segundo explicou, a legislação sobre o assunto demanda interpretação e não há consenso sobre a prática de vender remédio sem receita ser crime.

O presidente do Conselho de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF), Farid Buitrago, entende que a prática é, sim, um crime, já que há um órgão regulador que determina a apresentação e até retenção da receita médica. “Comprar medicamento sem prescrição é considerado um crime. Tanto a pessoa que está fazendo a prática quanto a farmácia que disponibiliza o medicamento que precisa da prescrição médica para ser dispensado estão cometendo um ato ilícito. Existem medicamentos que são regulados pela Vigilância Sanitária que só serão dispensados mediante apresentação de uma receita médica porque são medicamentos potencialmente danosos, a depender da dose e da pessoa que está utilizando”, disse ao Correio.

O Conselho de Farmácia do Distrito Federal (CRF-DF) esclarece que a prática configura uma infração ética e lembra que o profissional de farmácia tem legislações específicas a cumprir, especialmente diante do enfrentamento de uma pandemia. A presidente do conselho, Gilcilene Chaer, frisou que a prática está errada e que o profissional pode ser punido administrativamente. “É dever do farmacêutico seguir as legislações vigentes para o exercício da sua função e, sobretudo, orientar a população quanto ao uso indiscriminado de medicamentos para o tratamento da covid-19 e demais utilizações. Além disso, a sociedade necessita descontinuar a prática de uso de medicamentos por conta própria, no sentido de evitar complicações e manifestações contrárias ou indesejáveis tanto na covid-19, como nas demais patologias”, explicou.

O farmacêutico Rafael Nobre gravou com a equipe da Tv Brasília na manhã dessa sexta (7/8). Ele disse que é responsável pela farmácia e que o local não comete nenhuma irregularidade. Questionado se há venda de kit covid pelo Whatsapp, ele negou a denúncia.

Automedicação: efeitos colaterais

O Conselho Regional de Medicina alerta repetidamente que automedicação pode trazer danos à saúde, como destaca o presidente Farid Buitrago. “Cada medicamento pode ter um efeito adverso e reage de forma diferente nos organismos. Os medicamentos devem ser uma consequência de uma consulta médica. O paciente deve ser consultado e, posteriormente, o médico faz a recomendação do medicamento de acordo com a patologia. Por isso, não recomendamos a automedicação, pois ela pode trazer efeitos colaterais danosos à saúde.”

David Urbaez, infectologista do Laboratório Exame, destaca que não existem medicamentos indicados no tratamento da covid-19 e reforça que os efeitos adversos dos fármacos utilizados para fins diferentes dos previstos na bula podem ser gravíssimos. “Nós temos recebido pacientes com pancreatite por Ivermectina. Isso nós nunca tínhamos visto, porque a Ivermectina é um medicamento anti-piolho, anti-sarna e anti-verme que se usa em dose única, e as pessoas, agora, usando de maneira prolongada, estão apresentando quadros muito graves de pancreatite.”

O médico também alerta para outro risco: o dano à saúde coletiva. Ele destaca que a falsa sensação de segurança pode deixar a pessoa e todos a seu redor efetivamente vulneráveis ao novo coronavírus. “A pessoa tem a falsa segurança porque ela está fazendo esse denominado 'tratamento precoce' e por isso ela está isenta, ela está praticamente vacinada contra o coronavírus. Dessa maneira, ela não se protege com todos os dispositivos do protocolo, tornando-se muito suscetível, muito vulnerável e também um vetor de perigo para os outros”, finalizou o infectologista.

Fiscalização

De acordo com a Anvisa, a fiscalização das farmácias é feita pela autoridade local, no caso, a Vigilância Sanitária do Distrito Federal. Em nota, a agência informou que “a fiscalização é feita pelas vigilâncias de cada município que tem acesso aos dados do SNGPC". "As punições variam de acordo com cada caso concreto, mas podem ir de advertência, multa a interdição.” Frisou ainda que não há comprovação de eficácia de nenhum remédio contra o novo coronavírus.

A Subsecretaria de Imprensa do Governo do Distrito Federal informou que Núcleo de Vigilância Sanitária do Núcleo Bandeirante não recebeu a denúncia, mas vai verificar a situação do estabelecimento. E orientou que as denúncias devem ser feitas através do telefone 162 ou no site da Ouvidoria do GDF: ouvdf.gov.br.

Após a publicação da reportagem, a Rede Farmarcas se manifestou informando que a drogaria localizada no Núcleo Bandeirantes utiliza a marca Ultra Popular irregularmente.

Nota da Farmarcas referente à reportagem ‘Farmácia no Núcleo Bandeirante vende ilegalmente ''kit covid-19''’

A Farmarcas, administradora de redes associativistas de farmácias, vem por meio desta nota alertar sobre o fato de que drogaria denunciada na reportagem ‘Farmácia no Núcleo Bandeirante vende ilegalmente ''kit covid-19''’, utiliza de formar irregular a marca das Drogarias Ultra Popular (https://www.drogariasultrapopular.com.br/).

A administradora informa também que as ações praticadas pela referida loja estão em total desacordo com o trabalho ético e responsável praticado pelas mais de 760 unidades das Drogarias Ultra Popular em todo o país, cuja preocupação básica é o cuidado sério e comprometido com a saúde da população.

Informamos também que nossa área jurídica já foi acionada e está tomando as medidas legais cabíveis para que nossa marca não seja mais utilizada de forma irregular e desleal pela empresa referida na reportagem. Também, parabenizamos o Correio Braziliense pela apuração séria que nos levou a tomar conhecimento dessa ação em desacordo com a lei.

As Drogarias Ultra Popular formam uma das maiores e mais respeitáveis redes de farmácias do Brasil e se caracterizam por atuarem no modelo associativista desenvolvido pela Febrafar – Federação Brasileira das Redes Associativistas e Independentes de Farmácias, tendo como foco a capacitação dos empresários e a excelência na gestão operacional das suas lojas.

As farmácias da rede estão presentes em mais de 280 cidades brasileiras, inclusive nas principais capitais do país. As Drogarias Ultra Popular possuem uma marca com grande credibilidade e confiança do consumidor, que prioriza o melhor preço aos seus consumidores.


Veja notas do GDF, da Anvisa e do Conselho de Farmácia do DF na íntegra:

NOTA DA SUBSECRETARIA DE IMPRENSA DO DISTRITO FEDERAL
O Núcleo de Vigilância Sanitária do Núcleo Bandeirante não recebeu a denúncia, mas vai verificar a situação do estabelecimento.

A Diretoria de Vigilância Sanitária (Divisa) esclarece que a fiscalização em farmácias e drogarias é realizada anualmente por ocasião do licenciamento sanitário e em atendimento a denúncias recebidas por meio do telefone 162 ou no site da Ouvidoria do GDF: ouvdf.gov.br

NOTA DA ANVISA

É importante esclarecer que todos estes medicamentos já estavam sujeitos à prescrição médica. O que a Anvisa fez foi publicar uma regra específica para coibir a compra indiscriminada de medicamentos que têm sido amplamente divulgados como potencialmente benéficos no combate à infecção humana pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), embora ainda não existam estudos conclusivos sobre o uso desses fármacos para o tratamento da Covid-19. Esta regra inclui a hidroxicloroquina, cloroquina, nitazoxanida e ivermectina. Assim estes quatro medicamentos passam a ter receita em duas vias, sendo que uma fica retida na farmácia e é incluída no sistema de controle informatizado SNGPC. A dexametasona e o clexane não estão na regra, mas são medicamentos sujeitos a prescrição médica simples. A fiscalização é feita pelas vigilâncias de cada município que tem acesso aos dados do SNGPC. As punições variam de acordo com cada caso concreto, mas podem ir de advertência, multa e interdição. Esta fiscalização, inclusive a destinação de medicamento sem uso, é da Vigilância Sanitária do DF. Cabe ao órgão local a fiscalização do estabelecimento. É preciso deixar claro que não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da Covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso. À autoridade local é que cabe avaliar o caso concreto e inclusive acionar outras autoridades caso existam indícios de crime. Até o momento, não existem medicamentos aprovados para prevenção ou tratamento da Covid-19 no Brasil.


NOTA CONSELHO DE FARMÁCIA DO DISTRITO FEDERAL

A comercialização de medicamentos é regida por legislações específicas. O comércio varejista de produtos farmacêuticos, sem manipulação de fórmulas, como a farmácia comunitária, deve se atentar às legislações para a compra e para a venda dos medicamentos, os quais possuem grupos farmacológicos com regras próprias, regidos por leis que devem ser respeitadas.

Nesse sentido, podemos exemplificar que, para a venda e dispensação de medicamentos sob prescrição médica, existe a obrigatoriedade de atender aos ditames da Lei 6437/77. Do mesmo modo, a comercialização de medicamentos antimicrobianos deve ser realizada em consonância com a RDC 20/11, a qual institui a obrigatoriedade da farmácia prover o recolhimento de uma via de receituário. Em adição, não podemos esquecer que os medicamentos controlados só podem ser dispensados com a retenção dos receituários específicos para cada grupo, conforme estabelecido pela Portaria 344/98.

Paralelamente, para fins de esclarecimento, existem os fármacos livres de prescrição médica (MIP), sendo estes desobrigados para a comercialização a apresentação ou retenção de receita. Ainda assim, por mais que não sejam necessários receituários médicos, há sim o risco de intoxicações e interações medicamentosas consideráveis. Por isso, é fundamental que sejam dispensados apenas por farmacêuticos, que prestarão orientações importantes quanto ao uso correto.

Atualmente, frente à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), muitos medicamentos estão sendo estudados e utilizados para o tratamento da covid-19, mesmo em esquema off-label. Porém, grande parte dos fármacos utilizadas para esse fim já são prescritos há décadas para o tratamento de outras doenças e fazem parte do grupo de medicamentos de venda sob prescrição médica. É importante destacar que, de forma cultural e equivocada, parte da população brasileira acredita que a apresentação de receituário médico é obrigatória somente para a compra de medicamentos controlados, o que não é verdade. De fato, os medicamentos controlados devem ser dispensados após a apresentação e recolhimento do receituário, mas os demais medicamentos sob prescrição médica, só devem ser vendidos e dispensados com a apresentação da receita, conforme estabelecido pela lei 6437/77, já mencionada anteriormente.

Frente a isso, é dever do farmacêutico seguir as legislações vigentes para o exercício da sua função e, sobretudo, orientar a população quanto ao uso indiscriminado de medicamentos para o tratamento da covid-19 e demais utilizações. Além disso, a sociedade necessita descontinuar a prática de uso de medicamentos por conta própria, no sentido de evitar complicações e manifestações contrárias ou indesejáveis tanto na covid, como nas demais patologias.

Caso o farmácia esteja dispensando medicamentos de prescrição médica sem a receita do médico, o farmacêutico poderá responder eticamente por esse ato.

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