No mês de fevereiro, quando houve a abertura do ano legislativo, a simplificação dos impostos entrou como uma das pautas prioritárias para serem discutidas em 2023. Debatida há quase três décadas, a reforma tributária requer um novo escopo, em que o desenho progressivo do sistema aponte para a justiça fiscal, que apenas será alcançada quando os contribuintes forem tributados de acordo com a sua capacidade contributiva.
Essa avaliação, feita pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), pontua que a mudança é um caminho para o crescimento de 12% a 20% do Produto Interno Bruto (PIB), em 10 a 20 anos, e, também, para a geração de emprego e renda. Até o início do mês de abril deste ano, a entidade indicou que o Brasil concede quase R$ 370 bilhões em privilégios tributários apenas na esfera federal, sem levar em conta estados e municípios.
Por meio do portal Privilegiômetro Tributário, a Unafisco explica que esses privilégios são benefícios concedidos às empresas em que não há qualquer retorno econômico, o que dificulta a diminuição das desigualdades no país. Segundo a organização, em grande parte dos casos, os benefícios fiscais são introduzidos sem que um estudo sério e fundamentado seja apresentado com as justificativas relacionadas ao desenvolvimento nacional sustentável e à geração de empregos.
“Isso ocorre devido a arranjos políticos selados no Congresso Nacional com o apoio de grupos de interesse poderosos que se aproveitam da fragilidade da base parlamentar do governo contemporâneo à aprovação do respectivo benefício. Nesse cenário, a visão da área técnica do governo acaba sendo ignorada”, informa Mauro Silva, presidente da Unafisco.
Com os recursos calculados, a Associação estima que seria viável realizar a construção de quase 85 mil escolas, com capacidade para 225 alunos; criação de cerca de 73 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS); 88 mil Unidades de Pronto Atendimento (UPA); e aproximadamente 830 mil unidades habitacionais de 47m².
Para mudar essa realidade, o presidente da Unafisco alerta sobre a importância de a reforma tributária incluir a tributação do patrimônio e da renda, especialmente na parte dos lucros e dividendos, para além da reforma dos impostos sobre o consumo. “Não há empecilho para que outras propostas ocorram de forma concomitante à do consumo, trata-se de uma escolha política", complementa.
Dessa forma, o posicionamento da Associação é em prol da correção da tabela do Imposto de Renda; a volta da tributação dos lucros e dividendos; a ampliação da tributação sobre o patrimônio; e a melhoria na base dos tributos que financiam a Previdência.
Para a entidade, essas mudanças não podem esperar, levando em consideração o intuito de trazer a uniformidade nacional da legislação, a simplificação e o combate aos desequilíbrios entre os entes federativos, bem como a eliminação da concessão de benefícios fiscais ineficientes.
Silva indica que a disfuncionalidade do sistema traz consequências amplas e culminam em um desenvolvimento econômico defasado e, inclusive, no aumento de disparidades regionais. De acordo com o presidente, a enorme quantidade de leis, o volume do contencioso judicial e administrativo e o custo de conformidade tributária são alguns dos fatores que desestimulam os investimentos e impactam o país em âmbito geral.
“A não correção da tabela do Imposto de Renda e a não tributação dos lucros e dividendos violam o princípio constitucional de igualdade no que se relaciona à capacidade contributiva. Além disso, a guerra fiscal entre estados, proveniente da disputa pela cobrança de tributos, enfraquece o federalismo brasileiro e acaba beneficiando apenas algumas empresas”, ressalta o presidente da Unafisco.
Em quase 30 anos, o tema obteve, aproximadamente, seis Propostas de Emendas à Constituição (PECs) e um Projeto de Lei (PL) no Congresso Nacional. A primeira proposta de reforma tributária sobre o consumo, por exemplo, foi a PEC 175/1995. “O tema é pertinente à agenda tributária há muito tempo. Porém, a discussão enfrenta resistência por setores beneficiados pelo sistema atual, bem como assusta os entes federativos com medo de perder receitas”, explica Silva.
No cenário atual, para avançar as tratativas, organizar o sistema brasileiro de impostos e corrigir distorções, duas propostas recentes ganharam espaço no Congresso: a PEC 110/2019, do Senado; e a PEC 45/2019, da Câmara. Na prática, ambas as PECs sugerem a extinção de impostos específicos. Entre eles, os mais discutidos são o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto Sobre Serviços (ISS).
Substituindo esses tributos, é sugerido a implementação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que segue o modelo dos Impostos sobre Valor Agregado (IVA) cobrados na maioria dos países desenvolvidos. O IVA é um modelo para mudar essa realidade, unificando os tributos sobre bens e serviços.
Para a Unafisco, no que tange à reforma sobre o consumo, é necessária a adoção do Imposto Seletivo (IS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), tributos de competência federal, capazes de prevalecer as autonomias administrativas e a independência do repasse.
Atualmente, as classes baixa e média são as mais afetadas pelo sistema tributário vigente, pois que arcam com uma carga tributária proporcionalmente mais elevada que os mais ricos. Por essa razão, o auditor fiscal e secretário-geral da Unafisco Nacional, Pedro Delarue, afirma que o redesenho do sistema tributário é uma medida imperativa, haja vista que afeta as famílias brasileiras na qualidade de contribuintes, e os entes federativos, que disputam uns com os outros pela legitimidade da cobrança de determinado tributo.
“A complexidade oriunda da existência de 27 legislações de ICMS e dezenas de legislações de ISS, tanto em relação ao tributo quanto em relação ao direito de defesa do contribuinte (contencioso), é fator que afeta o custo das empresas e desestimula o investimento e a geração de emprego e renda”, destaca.
No entanto, Delarue reforça que é preciso calibrar bem a setorização de alíquotas do novo IBS subnacional (junção do ICMS e do ISS) para não onerar demasiadamente alguns setores que, hoje, estão alinhados com outro nível de alíquotas. O auditor fiscal informa que uma calibragem mal feita pode transferir para a classe média um peso enorme e desproporcional da carga tributária, especialmente no que se relaciona com a tributação da saúde e da educação.
CARF e o voto de qualidade
Em janeiro deste ano, foi publicada a Medida Provisória (MP) que retoma o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, que possui a atribuição de julgar, em segunda instância administrativa, os litígios em matéria tributária e aduaneira.
“Reinserido por meio da MP 1160/2023, o voto de qualidade corresponde a uma técnica de desempate em que, na hipótese de haver empate, a decisão final será do representante da Fazenda Nacional, que são os presidentes das Turmas e Câmaras do CARF”, explica George Alex Lima de Souza, diretor de Defesa Profissional e Assuntos Técnicos da Unafisco.
Há três anos, o voto de qualidade havia sido extinto com a Lei 13.988, oriunda da MP do Contribuinte Legal, onde foi estabelecido que os empates seriam decididos a favor do contribuinte. Desde 2020, a Unafisco se posiciona contra o fim do voto de qualidade, tendo atuado em duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI).
“Enviamos, inclusive, uma denúncia à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontando o fim do voto de qualidade do CARF como um fator negativo para a entrada do país naquele órgão. Hoje em dia, destacamos que a volta do voto de qualidade não traz prejuízo ao contribuinte que possuir uma decisão desfavorável, pois ainda poderá recorrer ao Judiciário para discutir o crédito tributário”, contextualiza.
O especialista destaca que o assunto está relacionado com a reforma tributária, pois se propõe a reduzir os litígios tributários, em âmbito judicial e administrativo, em razão da simplificação normativa. Na prática, sem a existência do voto de qualidade, o Judiciário será acometido de um grande volume de processos, o que atuará negativamente na celeridade processual.
Em contrapartida, George Alex ressalta que uma ideia mais adequada para o ambiente político pode envolver o alívio das garantias que o contribuinte tem que apresentar na justiça quando discute a decisão do CARF que lhe foi contrária. “Isso, a depender do perfil histórico de colaboração do contribuinte com o Fisco, mas sem envolver qualquer desconto no total da dívida tributária”, complementa.
Lei Orgânica do Fisco
Ainda no âmbito tributário, a Unafisco ressalta a importância do Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) na redução das desigualdades regionais. No mesmo sentido, defende que a participação dos municípios e dos estados na administração tributária seja feita de maneira eficaz e ativa, em pleno respeito ao desenho federativo.
O primeiro vice-presidente da Unafisco, Kleber Cabral, indica que, na eventual criação de um órgão federativo, deve ser garantido o provimento exclusivo por servidores efetivos da administração tributária na gestão do respectivo ente federativo.
“Defendemos a previsão constitucional de uma Lei Orgânica do Fisco (LOF) e, para tanto, trabalhamos junto ao relator da PEC 110 para fazer constar no texto a inclusão da lei complementar que estabelece normas gerais aplicáveis às administrações tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, dispondo sobre deveres, direitos e garantias dos servidores dos cargos exclusivos de Estado”, complementa.
Segundo a entidade, a previsão e a instituição da LOF tornam-se praticamente um imperativo no contexto de reforma tributária e do lançamento do arcabouço fiscal pelo atual governo. “Quando aprovada a reforma tributária, uma Lei Orgânica trará maior segurança jurídica na atuação das diversas autoridades tributárias tanto no âmbito federal quanto no âmbito subnacional, possibilitando maior estabilidade e regras transparentes na relação Fisco-Contribuinte, que precisa evoluir para uma situação de maior cooperação e me nor litigiosidade”, analisa Kleber Cabral.
Matéria escrita pela jornalista Gabriella Collodetti