DIREITOS HUMANOS

Indígenas cobram instalação da Comissão da Verdade

Criação de um grupo para investigar crimes cometidos contra etnias na ditadura militar não saiu do papel. Regime autoritário tomava posse dos territórios originários de forma violenta, além de promover ações de recrutamento

No início do mês, na Esplanada, indígenas reivindicaram direitos e denunciaram crimes cometidos ao longo de décadas contra os povos originários -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
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No início do mês, na Esplanada, indígenas reivindicaram direitos e denunciaram crimes cometidos ao longo de décadas contra os povos originários - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

O Acampamento Terra Livre (ATL) — que ocorreu neste mês —, considerado o maior evento de mobilização dos povos indígenas do Brasil, trouxe de volta o debate sobre a responsabilização dos militares do período ditatorial pela perseguição e repressão dos povos originários. Para as lideranças, o tema está diretamente ligado com a batalha pela demarcação de territórios, prevista na Constituição de 1988.

Em 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva planejava a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) para o ano seguinte, por meio do Ministério dos Povos Indígenas, da ministra Sônia Guajajara. No entanto, a ação não saiu do papel. O objetivo era fomentar uma melhor justiça de transição, que mesmo após a redemocratização, ainda sofre nas mãos do agronegócio, dos garimpos ilegais e de madeireiras clandestinas.

O Correio procurou o Ministério dos Povos Indígenas e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas para tratar do tema, mas não obteve resposta.

Ao jornal, o líder indígena Ailton Krenak afirma que, para implementar uma comissão, é preciso observar a realidade e o contexto político atual. Para ele, o grupo poderia ser criado por meio de recursos públicos e com a definição oficial sobre funções e metas. "Quem é que vai instalar uma comissão dessa? Com que acordo e quem vai autorizar? Vai ser o presidente da República sozinho? Vai ser o Congresso ou o Judiciário? Quem assumirá o risco de estar à frente de uma comissão como essa em uma situação em que a democracia é o tempo inteiro agredida?", questiona.

Ele critica a falta de resolução do Marco Temporal e a ausência de uma comissão para investigar os crimes contra os povos originários. "Quando a gente olha o período da ditadura e as violências contra os povos indígenas, percebe que tem um dispositivo que é permanente", diz o filósofo imortal da Academia Brasileira de Letras.

Krenak também aponta os erros da tese da demarcação de terras. Segundo ele, o assunto está ligado diretamente a posse ilegal de áreas por militares durante a ditadura. "Muda de nome, mas aparece com o mesmo propósito, que é retirar os direitos destes povos originários, impor um sistema de governo que obriga essas pessoas a se integrar ao regime nacional da experiência da vida brasileira sem os seus direitos originários", lamenta.

O líder indígena Edson Kayapó, professor de história do Instituto Federal da Bahia (IFBA), partilha do mesmo entendimento. Ele também afirma que serviços do governo teriam sido usados para financiar a corrupção e a violência contra os povos originários.

"Em 1967, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi extinto, denunciado, inclusive, pelo Relatório Figueiredo, que falava de todas as atrocidades que o SPI tinha cometido. E aí, quem assume essa política, como agência de tutela, foi a famosa Fundação dos Povos Indígenas (Funai). A Funai, na verdade, vai continuar com a mesma prática de violência, uma prática de integração do indígena ao seio da sociedade brasileira. A ideia, então, não muda", aponta Kayapó.

O professor também aponta a importância do protagonismo indígena para a criação de uma comissão da verdade. Ele explica que, ao longo da história, a produção de conhecimento, de história e antropologia sobre os povos era feita, geralmente, por pessoas brancas que não dialogavam e nem buscavam aproximação com as etnias.

"Quem deve estar na linha de frente, na coordenação disso, tem que ser indígenas especialistas e lideranças indígenas. Isso não significa dizer que não indígena não vai participar. Poderá participar, sim, mas quem vai estar no comando, quem vai estar controlando a rédea, serão os indígenas. Isso é fundamental", defende.

Reformatório Krenak

A ditadura militar tomava posse dos territórios originários de forma ilegal e violenta. De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período investigado (1946-1988). O documento destaca que esse número é uma "pequena parcela do que se perpetrou" e descreve como os planos governamentais sistematicamente levaram a tomada das áreas.

Ailton Krenak conta que em sua aldeia, em Minas Gerais, foi criado um "laboratório" da ditadura militar — que mais tarde viria a ser conhecido como Reformatório Krenak. Ele explica que era como "um ensaio da ditadura", militarizando os indígenas por meio de um regime de quartel na aldeia, criando policiais que iriam compor a Guarda Rural Indígena (Grin).

Para lá, eram encaminhados indígenas de diversas etnias que desobedeciam o SPI. "Imagina, um cara retirado lá do meio de Craô e jogado aqui na beira do Rio Doce, em Minas Gerais. Ele recebe uma farda de soldado, uma farda falsa, porque era uma guarda inventada por um militar aqui de Minas Gerais, uma guarda chamada Grin. Esse sujeito (o servidor público Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro) fez um ensaio, ele queria criar uma milícia indígena, só que pelo Estado", relata Krenak.

*Estagiário sob a supervisão de Luana Patriolino

 


postado em 20/04/2025 04:05